O “espaço teatral” em Calderón: estrutura, justaposição e coexistência
Nota: Este artigo é parte da reflexão sobre a criação de A Tríplice Fronteira / La Triple Frontera / Yvy Marãe’y, publicada na seção de processos desta edição: http://www.questaodecritica.com.br/2018/02/a-tryple-frontera-texto-residual
No hay cuadro alguno que nos haga olvidar éste
Carl Justi
A presente análise vai se utilizar do Manifesto para um Novo Teatro via leitura do barroco por Severo Sarduy para pensar o “espaço teatral” em Calderón, trabalhando como hipótese a criação de sua estrutura elíptica como justaposição de superfícies e coexistência de paradigmas.
Esse artigo foi escrito em 2015 para a cadeira de Estéticas e Teorias do Teatro, durante o Mestrado em Dramaturgia na Universidad Nacional de las Artes (UNA- Buenos Aires). Em termos conceituais existe uma paridade com o projeto A Tríplice Fronteira/ La Triple Fronteira / Yvy Marãe’y no que se refere ao processo de justaposição de superfícies e coexistência de paradigmas e texturas.
Introdução
Pasolini publica o Manifesto para o Novo Teatro na revista italiana Nuovi Argumenti no ano de 1968: escreve mais de trinta pontos para defender o “teatro de palavra” que como rito cultural “busca seu ‘espaço teatral’ não no ambiente, mas na cabeça”. (PASOLINI, 2005)
Calderón, uma de suas seis obras teatrais, parte da chave ilusão-sonho-delírio / realidade-lucidez-juízo para construir sua própria estrutura que, ao longo da obra, se mantém em constante processo de atualização, variando seu espaço-tempo-vínculo a cada despertar de Rosaura.
Esta relação entre o espaço teatral citado por Pasolini e o funcionamento da maquinária estrutural de sua obra vai se desenvolvendo aos poucos na cabeça do leitor/espectador e revelando uma impactante justaposição de superfícies:
Segismundo pergunta a Rosaura se ela leu La vida es sueño, de Calderón de la Barca. Rosaura lhe assegura que só ouviu falar dele, ao que Segismundo resume:
Había un rey, un profeta, que había leído en el futuro que su hijo (Segismundo, casualmente, como yo) lo mataría. Entonces mandó que lo encerraran en una torre encadenado, alejándole de la vida como a un monstruo. Pero un día el rey se arrepentió. Y quiso hacer un experimento para comprobar sus profecias. Mandó poner en libertad a su hijo tras haber ordenado que lo durmieran profundamente con narcóticos legendarios, y lo hizo despertar en su palacio, en un lecho maravilloso, de hilo y brocados. Para Segismundo esto era un sueño, es evidente. Pero en el sueño vio a una mujer y se enamoró de ella. El sueño estaba destinado a terminar (y así Segismundo fue encerrado de nuevo, dormido, en su torre): el sueño estaba destinado a terminar, pero no así su amor. (PASOLINI, 1973)
Sobre a superfície de La vida es sueño, obra de Calderón de La Barca de 1635, Pasolini trabalha este mito, o manipula, o deforma e o cita por um outro Segismundo, um duplo, sob o recorte: “En el nuevo sueño un sentido continuaba. ¿Qué ha querido decír, con esto, Calderón?”. Esta parece ser a pergunta que faz funcionar o sistema de paradigmas, despertar pós despertar, que está presente na obra.
Nesta apropriação quem passa por uma sucessão de sonhos é Rosaura. Neste sentido, desde já se percebe um vertiginoso desdobramento – desencaixes e duplicações – que se constitui não só como poética, mas também como procedimento, como fica evidente na estrutura, procedimento esse que está em diálogo direto com o Barroco.
A estrutura: justaposição de superfícies
Quando passa a operar a cosmologia barroca, segundo análise de Sarduy, passamos do paradigma-Galileu ao paradigma-Kepler, o qual aponta que na atividade simbólica algo se descentra,
duplica su centro, lo desdobla; ahora la figura maestra no es el círculo de centro único, irradiante, luminoso y paternal, sino la elipse, que opone a ese foco visible otro igualmente operante, igualmente real, pero obturado, muerto, nocturno, el centro ciego. (SARDUY, 1974)
Esta deformidade – que a trajetória elíptica cria na sua própria estrutura – pode ser percebida no gráfico exposto ao final deste texto, que desenha o índice de Calderón[1]: um estásimo – dois episódios; um estásimo – DOZE episódios; um estásimo – dois episódios.
Segundo a poética aristotélica o estásimo é parte essencial à estrutura da tragédia clássica: é o canto do coro que se alterna a cada um ou dois episódios. O que formalmente configura um desenvolvimento circular da ação. Quer dizer: a tragédia de Pasolini que “começa já começada” (‘comienza’ ya empezada) segundo Toledo pela falta constitutiva de elementos que antecedem o estásimo (prólogo e párodo), é também produção de instabilidade, estratégia que dialoga diretamente com o barroco ao interromper a circularidade (um estásimo-dois episódios) pela elipse (um estásimo -doze episódios).
O que isso define na narrativa é, por um lado, uma assimetria rítmica (por não se imprimir a constância e regularidade da figura do Locutor e assim também ser um elemento que irrompe e surpreende). Por outro lado, é nesta parte elíptica que se configura o descentramento barroco e se operam os duplos, quer dizer, quando todos os paradigmas co-existem e expandem o campo obsceno da obra.
É preciso marcar que tal tragédia já começada está internamente – e justo no campo elíptico– composta por tragédias interrompidas na anagnórisis, ou seja, o giro da fortuna que segundo a Poética alteraria a conduta da personagem, quando a clareza sobre sua situação não chega a alcançar seus efeitos demolidores, portanto. A revelação, o que provoca, é um novo despertar de Rosaura até uma realidade que ela tampouco reconhece, tal como o juízo do leitor/espectador. Ou seja, o que faz Pasolini é operar a tragédia até a multiplicidade de pontos de localização que permite o barroco. Podemos associar isto, com o devido distanciamento, aos estudos de Lacan sobre a função do barroco na arte, que seria “evocar o gozo ao exibir o corpo” (LANNINI, 2012). É este fora de cena – o obsceno– que converte a figura barroca como uma interpelação: “Nem uma significação simples, nem todos os sentidos possíveis. Nem aberta a todos os sentidos nem a qualquer um”. (LANNINI, 2012, citando a REGNAULT, F.).
É esta falta de clareza que une Rosaura e o leitor/espectador para buscar uma re-localização na trama. Tanto é assim que os signos de reconhecimento se repetem sonho pós sonho, seja qual for sua irmã (Estrella-Carmen-Agustina): “Onde estou?”; “E você, quem é?”; “Meu pai? Minha mãe? Eu, deles, não sei nada, nada, sou alheia a todos aqui dentro, quero partir novamente, quero regressar para ali de onde venho!”.
Sobre isso, o que sugere Sarduy é que
No barroco, a poética é uma Retórica: a linguagem, código autônomo e tautológico, não admite em sua densa rede, carregada, a possibilidade de um eu gerador, de um referente individual, centrado, que se expresse – o barroco funciona no vazio – que se oriente ou detenha a crescida de signos. (SARDUY, 1974).
E é justamente onde a própria dinâmica descentralizadora da elipse cria o claro-escuro barroco, os dois centros espelhados: um que faz de Estrella, Carmen e Agustina duplos de sua irmã, a luz que complementa e revela a identidade da opaca Rosaura, como bem aponta Fernanda del Monte (DEL MONTE), em sua análise sobre a perspectiva barroca em Calderón.
O que faz Pasolini, então, é incluir mais superfícies: opacas-luminosas-espelhadas:
Em La vida es sueño Segismundo é o único que passa por uma mudança paradigmática ao ressignificar sua existência no sonho e na realidade, não sem a mediação de Clotaldo – o outro – é claro. Já Rosaura está em um jornada que inclui o espectador na resolução destes campos: é sonho? Ou é realidade e ela está louca? Ou qualquer que seja a hipótese levantada acerca do espaço-tempo-vínculo da nova realidade, como uma possível perda de memória, por exemplo. Mas tudo se sofistica quando uma e outra vez Rosaura desperta e seu contexto é completamente outro, contido nesta nova versão pela figura de sua irmã – o outro – que negocia as dimensões desta outra aparente realidade sem negar a “existência” – o sonho – anterior. É preciso se resignar ao fato de que tal discussão pareça repetitiva ou mesmo confusa em sua abordagem tamanha é a falta de contenção que oferece o Barroco em seu infinito desdobramento, mas chegamos ao ponto que interessava.
O que passa a operar, não só estruturalmente – como arquitetura – mas também como mecânica operativa deste sistema é um processo de atualização de um paradigma a outro, desenhando por justaposição o espaço teatral na cabeça do espectador, uma vez que tal labirinto não interessa a Pasolini como cenário (o espetacular na encenação).
A justaposição: atualização de paradigmas e outras superfícies
Estamos com Rosaura, leitores/espectadores, convivendo com as mesmas perguntas que ela se coloca sobre o espaço, o tempo, e vínculos a cada despertar. Já não interessa pensar uma progressão da ação ou uma suposta revelação: verdade-realidade-sonho-delírio.
Aceitamos a nova situação arquitetônica, enfrentamos o trompe l’oeil [2] que configura o cenário anterior – e possivelmente este atual – quer dizer: as novas hierarquias do poder e como estas estão operando neste mundo, assim como propõe Estrella a Rosaura:
Estrella: Mas como sei que não é um sonho, pois sou sua irmã, e tenho vivido sua realidade contigo, é preciso que você tente, pelo menos, supor, por hipótese, que não se trata de um sonho. Simulemos um jogo.
Rosaura: Que jogo?
Estrella: Simulemos que você não reconhece realmente esta cama em que acordou esta manhã, nem a mim, sua irmã, nem esta casa, chamada em família, como piada, de Palácio de Inverno, e todo o resto…
Rosaura: E depois?
Estrella: Simula então fingir que não sabe nada do mundo onde você acordou essa manhã e vive: e eu simularei ter que te explicar como estão as coisas. (PASOLINI, 1973)
Mudemos agora o termo aceitação por atualização das regras como postura mais ativa deste espectador idealizado por Pasolini. O que acontece é um processo de assimilação espaço-temporal, processo que Rosaura sofre ao aceder ao novo paradigma. Esta nova localização é uma sorte de mapa do espaço teatral, um acúmulo da arquitetura passada com a presente. Quer dizer: assim como opera o arcaico e o moderno, a tragédia clássica e o barroco, o jogo de dualidades aqui deflagra o fascismo à direita, no primeiro paradigma (a nobreza) e à esquerda, no segundo (a pobreza).
Desta maneira que o jogo, o deslocamento pelos truques, artifícios e espacialidade barroca, que Sarduy vai propor, volta sobre si mesmo como reflexo e cria uma existência dupla. Não se trata, portanto, da identificação de uma gênese, mas do próprio efeito retombée (causalidade acrónica,/ isomorfia não contigua,/ consequência de algo que ainda não foi produzido,/ parecido com algo que ainda não existe. Retombée é também uma similaridade ou um parecido no descontínuo: dois objetos distantes e sem comunicação ou interferência podem se revelar análogos, um pode funcionar como o duplo (…) do outro. Não há nenhuma hierarquia de valores entre o modelo e a cópia. SARDUY, 1987).
Conclusão
Pasolini pretende a criação de um espaço teatral na cabeça do espectador que, em Calderón, aparece como justaposição de superfícies. Este sistema garante um diálogo entre o arcaico e o moderno – a tragédia e o barroco – “Nosso ser burgueses inclui sentimentos antigos” – para a construção de uma arquitetura elíptica que permite, por sua vez, a coexistência de paradigmas distintos.
Podemos entender este espaço teatral como a própria teatralidade ou como o metaforiza Sarduy: artifício trompe l’oeil.
Nele, a adição de citações, a múltipla emissão de vozes, nega toda unidade, toda naturalidade a um centro emissor: fingindo nomeá-lo, rasura o que denota, anula: seu sentido é a insistência de seu jogo. (SARDUY, 1974).
O jogo aparece e insiste em sua dinâmica teatral, por exemplo:
– como trânsito da superfície do quadro Las meninas (Velázquez) por um lado e na fotografia de um lager[3], por outro;
– como sobreposição de lugares de mesma natureza, como aponta Foucault.
Rosaura: Não! Não sei! Não entendo. É um convento? É uma clínica? É um manicômio? É uma cadeia? (PASOLINI, 1973);
– como acúmulo de função dos personagens e a nova configuração de vínculo ao mudar o paradigma (como exemplo, a figura de Basilio que se atualiza como Pai e Rei de Rosaura, pai adotivo de Pablo – filho de Rosaura – e, por fim, marido de Rosaura);
– como superfícies alheias ao que seria o “material diegético” da obra: Calderón, Unamuno, Machado, Alberti, Grundiss, Lewin, Haydin, Marcuse, Malcolm X, Obi Egbuna, Carmichael, San Francisco Oracles, Brecht;
– como superfície das “fontes educativas”, de teatralidade e realidade, uma vez que são o mesmo: os objetos, as coisas, as realidades físicas que te rodeiam (Pasolini afirma que no teatro se encontram os mesmos signos da realidade). Aí estão a cama, as cortinas, o anel, a bacia como signos de realidade e conservadores da mesma.
– como intervenção do Locutor nas estásimas, operando o discurso indireto livre e demarcando códigos de leitura da obra (como a questão do cenário e mais uma vez a criação do espaço teatral na cabeça), ou marcando a presença do autor: “Ainda assim não posso eludir a função que me foi designada, e que forma parte do texto”;
– como engenharia barroca: a voz deste discurso indireto livre que, ao mesmo tempo que constrói, frequenta esses espaços teatrais. É como, do espelho, dentro do quadro Las Meninas, Lupe Rainha diz a Rosaura que interrogue o autor “e que ainda olhando de fora do quadro, está dentro dele”.
– como “mapa virtual” do jogo de paradigmas e da busca fracassada por um centro organizador:
Apesar da contundência do final que sugere – redimensionando todos os paradigmas antes propostos – que todos os sonhos poderiam ser realidade, o único sonho verdadeiro (“nada más que sueño”), é justo aquele que Rosaura lembra: com a entrada dos trabalhadores no lager repetindo “sois libres”, se poderia trabalhar também com a hipótese de que a obra teria um final aberto e se lançaria a um devir que apaga os limites da própria obra em direção a um delírio infinito: uma realidade sempre dentro de outra realidade, o sonho, esta ilusão (trompe l’oiel) que engana a superfície do muro – o que se pode imaginar uma vez que não existe êxodo como fechamento estrutural do texto. Mas é verdade que a obra encerra sua rotina circularmente ou, pelo menos, gera essa sensação.
Notas
[1] PIER PAOLO, Pasolini. Calderón. Icaria Literaria. Traducción de Carla Matteine (Primera Edición 1973, Aldo Garzante) Barcelona. 1997. p. 10.
[2] “Trompear”, segundo o dicionário Aurélio: “Em pintura, estilo no qual a imagem é representada com alto grau de detalhes realísticos, alcançado segundo o uso da perspectiva e do claro-escuro, levando o espectador a pensar que se trata de algo real, em três dimensões”.
[3] Do alemão, “acampamento”, “armazém”, tal como no original de Pasolini, ao se referir a um lager nazista.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES: La Poética. Traducción de José Goya Y Muniain. Buenos Aires, 1948.
DEL MONTE, Fernanda: Calderón de Pier Paolo Pasolini desde la perspectiva del barroco y el neobarroco, in www.academia.edu, visitado em novembro de 2015.
FOUCAULT, Michel: Vigilar y castigar: el nacimiento de la prisión. Traducción: Aurelio Garzón del Camino. Buenos Aires. Siglo XXI Editores Argentinos, 2002.
KUHN, Thomas S.: A Estrutura das Revoluções Científicas. Traducción: Beatriz Vianna Boeira, 1962.
LANNINI, Gilson (2012): Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Ed. Autêntica
NANCY, Jean Luc: La representación prohibida. Traducción: Isabel Vericat. Fractal n˚ 34, 2004
PASOLINI, Pier Paolo: Calderón. Icaria Literaria. Traducción de Carla Matteine (Primera Edición 1973, Aldo Garzante) Barcelona. 1997.
PASOLINI, Pier Paolo: Cartas Luteranas. Traducción de Josep Torrell y otros. 1997.
PASOLINI, Pier Paolo: Manifiesto para un Nuevo Teatro. Selección de Luis Feré, 2005
PASOLINI, Pier Paolo (1963): La Rabbia. Italia.
SARDUY, Severo (1974): Barroco. Buenos Aires: Sudamericana
SARDUY, Severo (1987): Ensayos Generales sobre el Barroco. Fondo de Cultura Económica México-Buenos Aires