A prática do etiud no “sistema” de Stanislavski

31 de agosto de 2015 Estudos

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: O artigo aborda a prática do etiud como meio pedagógico fundamental, considerando sua relação estreita com o Método de Análise Ativa, tanto para o conhecimento prático do “sistema” de Stanislavski quanto para a própria criação artística. A prática do etiud, que pode ser traduzido como estudo, constitui um exercício de investigação da ação que envolve o aparato psicofísico do ator em sua totalidade física, mental e emocional. O etiud, como “núcleo criativo”, possibilita o aperfeiçoamento do trabalho do ator ao acionar todos os elementos do “sistema” para a realização da ação.

Palavras-chave: etiud, Método de Análise Ativa, sistema, Constantin Stanislavski

Resumen: El artículo aborda la práctica del etiud como medio pedagógico fundamental, llevando en cuenta su estrecha relación con el Método de Análisis Activo, tanto para el conocimiento práctico del “sistema” de Stanislavski cuanto para la propia creación artística. La práctica del etiud, que puede ser traducido como estudio, constituye el ejercicio de investigación de la acción que envuelve el arato psicofísico del actor en su totalidad física, mental y emocional. El etiud, como “núcleo creativo”, posibilita el perfeccionamiento del trabajo del actor al accionar todos los elementos del “sistema” para la realización del actor.

Palabras clave: etiud, Método del Análisis Activo, sistema, Constantin Stanislavski

 

A prática do etiud[1] consiste na investigação artístico-pedagógica, por meio do trabalho ativo e criativo do ator, que concretiza cenicamente o Método de Análise Ativa, metodologia desenvolvida nos últimos anos de vida de Constantin Stanislavski. Em sua essência, como pedagogia teatral, a prática do etiud objetiva a educação/formação do ator pelo aprimoramento em “si mesmo” dos elementos do “sistema” de Stanislavski.

A palavra russa etiud (этюд) deriva do francês étude e significa tanto estudo, análise, como esboço e composição. Todos esses significados podem ser aplicados ao propósito de utilização do etiud na prática artística. Além da arte teatral, o etiud também pode ser encontrado na música, nas artes visuais, na literatura e na dança. O etiud pode ser praticado como metodologia de aprendizagem e aperfeiçoamento das habilidades técnicas do artista, e também pode ser aplicado no próprio processo criativo, na composição da obra de arte.

Desse modo, o objetivo da utilização do etiud na criação cênica não difere de seu uso em outras artes, já que consiste em um meio para o desenvolvimento do domínio artístico do aprendiz e também pode ser utilizado no processo investigativo para a criação do espetáculo teatral.

Segundo Nair Dagostini[2], a prática do etiud foi amplamente trabalhada no Estúdio de Ópera Dramática, entre os anos de 1935 e 1938. Stanislavski, nesse último Estúdio, estava voltado para a experimentação de meios para colocar em prática a sua nova metodologia, o método das ações físicas. Nesse momento de suas pesquisas, ele não estava preocupado com uma possível mise-en-scène, mas com o desenvolvimento da individualidade criativa do ator e com o fortalecimento de sua linha de ação, para que ela se tornasse firme e ininterrupta, pela lógica e coerência.

 

O Método de Análise Ativa e a criação de etiud

Após a morte de Stanislavski, diferentes vertentes da aplicação do etiud dentro do Método de Análise Ativa se formaram na Rússia. Neste estudo, abordo brevemente as pesquisas de Maria Knébel e de Gueorgui Tovstonógov, que foram desenvolvidas em Moscou e em São Petersburgo, respectivamente, e de Nair Dagostini, que desenvolve suas pesquisas no Brasil.

Maria Knébel, herdeira direta dos ensinamentos de Stanislavski e de Nemiróvich-Dântchenko, junto a Aleksey Popov, aplicou e desenvolveu o Método de Análise Ativa no GITIS – Academia Russa de Arte Teatral, tendo como discípulos Anatoli Vassiliev e Gueorgui Tovstonógov. Este último, juntamente com Arkádi Katzman, representa o desenvolvimento desse conhecimento prático no LGITMiK, atual SPGATI – Academia Estatal de Arte Teatral de São Petersburgo, e teve entre seus discípulos Nair Dagostini, que prossegue com suas pesquisas pedagógicas e artísticas a partir do Método de Análise Ativa.

 

Reflexões sobre a abordagem da Análise Ativa e a criação de etiud conforme Maria Knébel

Maria Knébel foi atriz, diretora e pedagoga. Discípula direta de Stanislavski, também foi aluna de Nemiróvich-Dântchenko, Evguêni Vakhtângov e Mikhail Tchekhov. Participou do Segundo Estúdio e de espetáculos do Teatro de Arte de Moscou. Em 1936, passou a integrar o Estúdio de Ópera Dramática, acompanhando de perto as últimas pesquisas de Stanislavski.

Para compreender o Método de Análise Ativa e a criação por meio de etiud, antes de tudo, é preciso entender como Stanislavski chegou a essa prática. Conforme Maria Knébel:

Ao aperfeiçoar seu método artístico, ao desenvolver e aprofundar o sistema, Stanislavski descobriu zonas de sombra no trabalho de mesa. Uma delas era o desenvolvimento da passividade do ator que, no lugar de buscar ativamente desde o começo do trabalho um caminho que o aproximasse do papel, encomendava ao diretor a responsabilidade da criação desse caminho. E, com efeito, durante o longo período de mesa, o papel mais ativo passa ao diretor que explica, relata, seduz, enquanto que o ator se adapta às respostas que o diretor-chefe dá por ele a todas as perguntas relacionadas com a obra e o papel (KNÉBEL, 1996, p. 14, tradução da autora).

Durante muitos anos, Stanislavski utilizou o chamado “ensaio de mesa”, que acontecia durante meses, como ponto de partida do processo de montagem de seus espetáculos teatrais. No decorrer de suas incansáveis investigações acerca do “sistema”, foi percebendo que essa abordagem de criação, conforme nos diz Knébel, afastava o ator da descoberta da ação em sua própria integralidade psicofísica, limitando, assim, as possibilidades criativas que surgem pela exploração ativa do ator em cena desde o início do processo de ensaios. Além disso, o conhecimento mental, que prevalecia no ator no decorrer dos “ensaios de mesa”, acabava indo em direção contrária ao objetivo mais caro a Stanislavski em relação à arte teatral – a busca pela autonomia criativa do ator.

A inquietação artística e a permanente investigação cênica levaram o mestre russo ao Método de Análise Ativa e a prática do etiud, que se encontram profundamente interligados. Pela prática do etiud o conhecimento da obra e a criação do ator se dão, necessariamente, pelo fazer, pela realização da ação nas circunstâncias dadas, no “aqui e agora” da cena. Para Stanislavski, no trabalho pedagógico da criação de etiud:

Os exercícios e o etiud, na medida do possível, são selecionados das peças do futuro repertório, sendo que no texto não se toca, se toma somente a linha da ação física, com a ajuda da qual gradualmente vai se estabelecendo a linha transversal de ação. O superobjetivo de cada peça deve ser delineado secretamente pelo professor, porque isso não pode ser feito de modo público, ao menos não no começo das aulas, enquanto os alunos não estão preparados para a percepção e o entendimento do superobjetivo. Neste método é importante que cada pequeno exercício ou etiud tenha sempre seu superobjetivo e sua ação transversal, com os quais se evita o mais importante: as incorreções e dificuldades dos etiuds escolares. O etiud em si e para si não pode ter nem sentido nem vida. No procedimento proposto, todos os etiuds, inclusive os menores, estarão animados por dentro, em todo momento, pelo superobjetivo e ação transversal (STANISLAVSKI, 1990, p. 325, tradução da autora).

Maria Knébel se refere à Análise Ativa realizada por meio de etiud como “estudos com texto improvisado” (KNÉBEL, 1996, p. 69, tradução da autora). De acordo com ela, por meio da Análise Ativa é possibilitado ao ator que “comece a imaginar claramente o que seu personagem faz na obra, o que quer alcançar, contra quem luta e a quem se alia, como se relaciona com os demais personagens” (idem, p. 69).

Desse modo, a partir da Análise Ativa são esclarecidos ao ator suas ações, objetivos, obstáculos e as relações com os demais personagens dentro de cada acontecimento. Quando o que o ator necessita fazer em cena para alcançar os objetivos do papel se torna concreto, é possível iniciar a criação a partir de “si mesmo” nas circunstâncias dadas, isto é, de acordo com suas próprias referências vivenciais e conforme os estímulos que surgem durante o processo, a cada momento. O ator deve se colocar ativamente em todas as circunstâncias da vida da personagem, de modo que, tendo compreendido as ações da personagem, torna-se livre para investigar e descobrir, por meio da improvisação, a lógica e a coerência dessas ações e as relações com seus partners.

Quanto à palavra, no trabalho de criação de etiud, Knébel ressalta que a aproximação do ator às palavras escritas pelo autor do papel também acontece pela improvisação: “(…) o trabalho com o etiud coloca o ator em condições de mudar as palavras do autor, porém o obriga a conservar as ideias do autor” (idem, p. 73). A abordagem do texto acontece, assim, a partir das próprias palavras do ator, desde que se respeite a ideia do autor. Depois da realização do etiud, o ator deve tornar a ler na obra o acontecimento trabalhado para verificar não apenas a “correspondência lógica do texto improvisado com as ideias do autor” (idem, p. 73), mas também para avaliar se compreendeu “o que é que engendra a agitação poética do autor, o que é que serve de alimento à vida da personagem quando fala” (idem, p. 74) e se conseguiu atingir o conteúdo da obra pela improvisação da palavra.

Desse modo, Knébel afirma que, em relação à palavra, “a finalidade perseguida pelo etiud é conduzir o ator até o texto do autor” (idem, p. 75). E, em sentido mais amplo, “que o objetivo do etiud não é outro que a profunda introdução [do ator] na essência da obra” (idem, p. 76), considerando que, para a realização de um etiud, o ator não precisa, necessariamente, fazer uso da palavra.

A criação de etiud, por meio da Análise Ativa, se constitui, portanto, em uma via orgânica de conhecimento profundo, ativo e artístico da obra.

Considerações sobre a Análise Ativa e a criação de etiud na visão de Gueorgui Tovstonógov

Gueorgui Tovstonógov[3] ressalta que a sua compreensão sobre o Método de Análise Ativa provém do conhecimento adquirido no GITIS com seus mestres A. Popov, A. Lobanov e M. Knébel, discípulos de Stanislavski, e do desenvolvimento de seu próprio trabalho prático e artístico como pedagogo e diretor teatral. Deve-se considerar também que teve a oportunidade de se encontrar com Stanislavski e de assistir a suas conferências, bem como a suas encenações no Teatro de Arte de Moscou. A partir desses referenciais, criou uma metodologia própria para o trabalho com a Análise Ativa.

A essência do Método de Análise Ativa, para Tovstonógov, em consonância com o pensamento de Stanislavski, reside na possibilidade de reproduzir em cena a “intrincada ‘vida do espírito humano’ por meio da mais simples das sequências de ações físicas” (TOVSTONÓGOV, 1980, p. 375, tradução da autora).

Segundo Tovstonógov, para conduzir a criação a partir do Método de Análise Ativa é preciso que o diretor tenha uma ampla compreensão do conflito central e das circunstâncias dadas da obra: “cada segundo da ação supõe uma confrontação ininterrupta. O diretor deve se lembrar de que não existe vida cênica sem conflito” (idem, p. 379). Para ele, o conflito não deve ser entendido apenas como um choque entre pontos de vista diferentes, pois engloba também as diferentes circunstâncias nas quais se encontram as personagens, circunstâncias estas que criam obstáculos para que as mesmas revelem o seu conflito. É necessário descobrir esses conflitos ocultos, que compõem a sustentação da cena; sem isso, não se pode pensar em uma “ação verdadeira” (idem, p. 380). Em cada personagem, existe uma linha de conflitos internos que cria a linha de ação, que gera a atmosfera da cena.

A respeito do processo de criação do espetáculo segundo o Método de Análise Ativa, Tovstonógov defende que se trabalhe diretamente sobre a cadeia lógica dos acontecimentos divididos na estrutura da obra, desde os principais até os secundários, para que se possa chegar, em um processo conjunto do diretor com os atores, à unidade da obra. Isso não impede que durante os ensaios essa sequência de acontecimentos possa ser alterada. Para ele, a busca pela criação de ações psicofísicas acontece a partir do choque entre as linhas de conflito estabelecidas na Análise Ativa. Nessa busca, a criação de etiud se faz necessária quando é preciso despertar a imaginação dos atores, levando-os a uma compreensão mais clara do conflito.

Saliento também, com base no pensamento de Tovstonógov, a importância da improvisação para o trabalho do ator sob o Método de Análise Ativa. Para ele, todo o elenco deve se encontrar “em um constante estado de improvisação criadora” (idem, p. 384). O Método de Análise Ativa, que tem como meio a improvisação, requer flexibilidade e contínua adaptação dos atores, exigindo um artista criador. Nessa metodologia de trabalho, não cabe ao diretor decidir como o ator vai realizar a sua ação, pois as adaptações surgem da busca ativa do ator por concretizar suas ações e relações em cena.

No que diz respeito ao trabalho com a palavra, Tovstonógov afirma que, de acordo com os ensinamentos de Stanislavski, os atores não devem aprender o texto por meio de uma memorização mecânica. O texto do autor surgirá no decorrer dos ensaios a partir da realização de ações psicofísicas e das próprias palavras do ator, desde que expressem a lógica contida na obra: “ao expressar a ideia do autor por meio de palavras próprias, às vezes mesmo com falta de destreza, o ator alcança o sentido da obra através da ação, desenvolvendo o significado da peça até a sua conclusão lógica” (idem, p. 387).

Nesse processo criativo, a imaginação “tem que ser flexível, ativa e capaz de reagir diante dos estímulos concretos” (idem, p. 393). De acordo com Tovstonógov, a imaginação é um dos elementos fundamentais do trabalho criativo, tanto o ator como o diretor devem acumular em si um depósito de observações e reflexões sobre as coisas da vida, buscando vencer o utilitarismo ao qual estamos normalmente ligados no dia a dia. A esse depósito, Tovstonógov chama de combustível da imaginação.

A Análise Ativa na criação de etiud partindo da abordagem de Nair Dagostini

Para aprofundar o estudo sobre a criação de etiud e a sua relação com o Método da Análise Ativa, em abril de 2011, realizei uma entrevista com a Profª. Drª. Nair Dagostini, cuja prática está embasada no conhecimento recebido de seus mestres Gueorgui Tovstonógov e Arkádi Katzman, herdeiros da tradição de Stanislavski. De 1978 a 1981, a diretora e pesquisadora teatral realizou pós-graduação no LGITMiK – Instituto Estatal de Teatro, Música e Cinema de Leningrado, sendo a primeira brasileira a estudar no mesmo.

Os ensinamentos de Stanislavski constituem uma tradição elaborada pelo fazer teatral, por esse motivo, esse conhecimento deve ser transmitido na prática – de mestre para aprendiz. Desse modo, quando a leitura da obra de Stanislavski acontece separada da experienciação prática, há grande possibilidade de mal entendidos.

O conhecimento sobre o Método de Análise Ativa e a prática de etiud foi transmitido a mim por Nair Dagostini durante a minha formação em Direção e Interpretação Teatral no Curso de Bacharelado em Artes Cênicas da UFSM, entre os anos de 1998 e 2003. De 2005 a 2007, aprofundei os estudos dentro dessa prática ao participar, como assistente de direção e atriz, do processo de criação do espetáculo teatral A Dócil, da obra de F. Dostoievski, dirigido por Nair Dagostini em sua pesquisa de doutorado. Sigo desenvolvendo minha prática pedagógica e pesquisas acadêmicas com base nesse conhecimento.

A reflexão de Nair Dagostini exposta neste trabalho foi impulsionada pelo seguinte questionamento: que relações podemos estabelecer entre a Análise Ativa, as ações físicas e a prática do etiud?

De acordo com Nair Dagostini:

O etiud é um núcleo de criação que contém a estrutura dramática de um acontecimento, como se fosse um “microespetáculo” criado no processo de educação e formação do diretor e do ator, e constitui a base de criação artística de uma obra. O etiud, além de investigar a ação, expressa o conteúdo do acontecimento, desvelando o caráter da personagem e as suas relações. O seu conteúdo fica claro por meio da ação do ator e de seu comportamento em cena (DAGOSTINI, 2011).

Segundo Dagostini, o etiud pode ser criado a partir de qualquer material, de uma ideia, de um tema, de um texto, que vai receber um tratamento artístico através da ação do ator no desenvolvimento de um acontecimento dramático.

Na estrutura do etiud, é necessário, em sua primeira etapa, criar o momento inicial que esclarece o universo no qual o acontecimento vai se desenvolver, ou seja, é preciso criar cenicamente o que acontece antes do surgimento da circunstância que dará início ao conflito (idem).

Desse modo, para esclarecer esse universo no qual o acontecimento se desenrola e concretizá-lo cenicamente, é preciso considerar as circunstâncias desse núcleo criativo que será trabalhado pelo diretor e pelo ator. Com o surgimento da principal circunstância dada, é gerado o começo do conflito:

Na segunda etapa, chamada de fundamental, inicia-se e desenvolve-se o processo de luta para alcançar o objetivo, através da ação (idem).

Com o esclarecimento do universo inicial e o surgimento da principal circunstância dada, é possível compreender e visualizar as forças opostas que formam o conflito que impulsionará o desenvolvimento do etiud rumo ao momento central.

Segue-se, então, o terceiro momento, chamado de central, que constitui o ápice da tensão dramática e, como consequência desse desenvolvimento, é gerado o momento final (idem).

Desde o momento fundamental, passando pelos momentos sequenciais, até o central, o desenrolar do conflito é traçado pela linha transversal de ação[4]. Esta linha direciona o objetivo das personagens para o ápice do conflito do etiud.

Cada um desses momentos funde-se com o subsequente com a entrada de novas circunstâncias, as quais obstaculizam a ação a ser realizada para o cumprimento da tarefa proposta. Esses momentos que constituem o processo de evolução da ação dramática dentro do acontecimento sofrem mudanças qualitativas através da entrada de novas circunstâncias, portadoras de sinais, que se constituem em obstáculos, os quais levam a reações, reconhecimentos e valorizações por parte do ator (idem).

No processo da Análise Ativa na criação de etiud é de suma importância perceber o surgimento de novas circunstâncias no decorrer do acontecimento, pois o desenvolvimento da trama depende do aprofundamento das circunstâncias, que provocam maior complexidade ao conflito. Em vista disso, o ator é obrigado a solucionar esses obstáculos que o impedem de alcançar o seu objetivo e, desse modo, é impulsionado a agir.

Com relação à Análise Ativa, a partir de um texto na criação de etiud, existe uma desconstrução da obra para desvelar a sua estrutura e, então, passar à sua recriação pelo ator:

A estrutura do etiud, ou seja, do acontecimento, é composta das mesmas etapas da análise geral da obra. Essa microestrutura do etiud corresponde à macroestrutura da obra, que sofre um procedimento similar de desestruturação, ou seja, de decifração do sistema do autor pelo diretor, que parte do geral para o particular, dos grandes acontecimentos da obra que compõem a sua totalidade (idem).

A Análise Ativa, de acordo com a sistematização que me foi transmitida por Nair Dagostini, contempla o desvendamento dos seguintes elementos da análise geral da obra[5]:

– Universo inicial: consiste no contexto em que a história está inserida e no qual inicia o seu desenvolvimento, considerando época, questões culturais, sociais, éticas, filosóficas e todas as informações que têm relação com a obra em sua totalidade.

– Acontecimento inicial: consiste na soma de circunstâncias que abrange o contexto no qual a história está inserida. Esse acontecimento concretiza cenicamente o universo inicial da obra.

– Principal circunstância dada: consiste na circunstância que dá origem ao conflito, gerando o acontecimento fundamental.

– Acontecimento fundamental: acontecimento que dá início à história gerada pela principal circunstância dada, pela entrada do conflito. É nele que se inicia a linha transversal da obra.

– Acontecimento central: consiste na realização cênica do ápice do conflito da história, em que termina a linha transversal de ação.

– Acontecimento final: acontecimento de finalização que se dá no grande círculo, no universo geral da obra, como resultado da história. Ainda existe o acontecimento principal, que pode coincidir ou não com o acontecimento final, no qual se concretiza o superobjetivo da criação pelo diretor e pelo ator.

– Acontecimentos sequenciais: são acontecimentos que se encontram entre os grandes acontecimentos – inicial, fundamental, central, final e principal.

– Grande círculo: corresponde ao geral, ao universo que contém a obra em sua totalidade.

– Médio círculo: corresponde ao particular, à esfera que contém o desenvolvimento do conflito, abrangendo a história desde o acontecimento fundamental até a finalização do acontecimento central.

– Pequenos círculos: correspondem ao singular, a cada acontecimento da obra.

– Ideia: consiste na elaboração de um pensamento que contemple a complexidade da obra, a sua síntese, abrangendo o universo inicial, o tema, a linha transversal de ação, o acontecimento central, o acontecimento final e o acontecimento principal.

– Tema: é depreendido dos acontecimentos da trama da história. Está ligado à fábula.

– Superobjetivo da obra e do espetáculo: a concretização cênica da ideia do autor e do diretor.

– Superobjetivo de cada personagem: consiste no principal objetivo almejado pela personagem e concretizado pelo ator.

– Linha transversal de ação da obra: consiste na linha ininterrupta da obra que atravessa todos os acontecimentos para concretizar o seu superobjetivo.

– Linha transversal de ação de cada personagem: consiste na linha de ações traçada ao longo dos acontecimentos, na luta de cada personagem para alcançar a realização de seu superobjetivo.

– Linha transversal de contra-ação da obra: encontra-se no grande círculo e se opõe à principal circunstância dada que dá origem à história situada no médio círculo. Consiste em um contínuo obstáculo à realização da linha transversal de ação, sendo responsável pela manutenção do conflito da obra.

– Objetivo de cada acontecimento: cada acontecimento possui um objetivo/tarefa que contribui para o desenrolar da obra e da história.

– Circunstância geradora de cada acontecimento: a circunstância que origina o acontecimento deve se opor ao objetivo deste, gerando o conflito que dá origem à ação.

– Objetivo de cada personagem dentro do acontecimento: dentro de cada acontecimento, cada personagem possui um objetivo, que estabelece a luta contra as circunstâncias dadas do acontecimento.

 

Da análise para a criação de etiud

Conforme o trabalho artístico e pedagógico desenvolvido por Nair Dagostini, após a análise da obra realizada pelo diretor, passa-se à criação de etiud pelo ator, em que são improvisados os acontecimentos selecionados na obra, bem como os tangenciais ao texto, considerados estes necessários para o entendimento da totalidade da vida das personagens. Cada etiud, ou acontecimento trabalhado, deve possuir uma totalidade: momento inicial, fundamental, central, final e principal, pois “a microestrutura do etiud corresponde à macroestrutura da obra”. O etiud deve contemplar o processo de desenvolvimento de um acontecimento, isto é, deve apresentar a travessia de uma linha de ação desde o seu início até o final.

Ao improvisar o etiud o ator deve tornar concretos os círculos de atenção grande, médio e pequeno, por meio da imaginação, nos diferentes momentos de sua ação. (…) Ao recorrer a essas imagens concretas, situadas na totalidade da obra, por meio dos círculos de atenção, o ator concretiza a imaginação através da ação (DAGOSTINI, 2011).

A consciência desses círculos de atenção ajuda a orientar o ator em sua criação durante a improvisação do etiud, de modo a tornar a sua ação concreta, com imagens e focos de atenção claros e precisos no momento presente, evitando uma atuação geral.

Para a realização da Análise Ativa em uma obra, é necessário uma verdadeira desconstrução para, em uma segunda etapa, iniciar o processo de recriação pelo ator. Como ressalta Nair Dagostini, na decomposição da obra é exigido do diretor conhecimento profundo da natureza humana, imaginação e capacidade analítica. Para conduzir esse complexo processo de criação, é preciso liberdade criativa por parte dos atores na investigação da ação, da sua lógica e coerência, da relação entre os partners, durante a improvisação do etiud. Para que o diretor possa conduzir esse processo, é necessário que ele possua o domínio sobre a arte do ator.

A prática do etiud possui alguns princípios gerais na sua aplicação: a ação, o seu desenvolvimento lógico e coerente; as circunstâncias; os acontecimentos; o estabelecimento do conflito nas relações entre as personagens; a geração da palavra em cena pela improvisação dos atores; o ator como agente criativo e o diretor como condutor desse processo. Esses são elementos e princípios que fazem parte da essência do Método da Análise Ativa desenvolvido por Stanislavski e seus seguidores.

A Análise Ativa, realizada por meio do etiud, contempla o “trabalho do ator sobre si mesmo” idealizado e posto em prática por Stanislavski. Pois a criação de etiud, além de proporcionar a conquista das habilidades que refletem no domínio da arte do ator, revela a singularidade de cada ser humano/ator, suas particularidades. O que acontece por meio de um grande trabalho para o alcance da ação viva, lógica e coerente, um trabalho para ser realizado por toda a vida do artista.

Finalizo este estudo com a seguinte afirmação de Stanislavski, realizada durante as aulas-ensaios sobre Hamlet, de William Shakespeare, no Estúdio de Ópera Dramática, em 26 de outubro de 1937:

(…) através de simples ações físicas vocês conseguem acordar a inteligência, a vontade e o sentimento e fazê-los trabalhar. Quando vocês os puxarem, surge o sentimento de verdade e a imaginação. Uma vez que há imaginação e sentimento de verdade, significa que surge a crença. Atraindo, no trabalho, toda sua vida psicológica, vocês estendem a linha, que necessitam. (…) Vocês têm possibilidade de trabalhar qualquer peça pela linha física, fazer études em qualquer linha da peça (…) (STANISLAVSKI apud DAGOSTINI, 2007, p. 127).

 

Referências bibliográficas:

DAGOSTINI, N. O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007.

DAGOSTINI, N. Entrevista concedida a Michele Almeida Zaltron. Porto Alegre, Abril, 2011.

KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996.

STANISLÁVSKI, K. Sobránie Sotchinénii: V 9 tomakh. Rabota aktera nad soboi. Tchast’ 2: Rabota nad soboi v tvórtcheskom protsésse voplochtchênia. T. 3. Moskvá: Iskusstvo, 1990.

TOVSTONÓGOV, G. La profesion de diretor de escena. La Habana: Arte y Literatura, 1980.

 

Michele Almeida Zaltron: Doutoranda em Artes Cênicas pelo PPGAC – UNIRIO, Bolsista CAPES, sob a orientação da Profa. Dra. Tatiana Motta Lima. Realizou Estágio de Doutorado Sanduíche no Exterior – PDSE/CAPES na Escola-estúdio do Teatro de Arte de Moscou (Moscow Art Theatre School), Rússia. Mestre em Ciência da Arte pelo PPGCA – UFF e Bacharel em Direção e Interpretação Teatral pela UFSM.

 

Notas:

[1] O tema da prática do etiud e sua relação com o Método de Análise Ativa foi abordado por mim, em um primeiro momento, na dissertação de mestrado: Imaginação e desconstrução em K. Stanislávski (UFF, 2011). No presente trabalho, retorno a esse tema trazendo contribuições de acordo com a minha pesquisa atual.

[2] Cf. DAGOSTINI, 2007, p. 98-99.

[3] Cf. TOVSTONÓGOV, 1980, p. 375-388.

[4] Segundo Nair Dagostini, a linha transversal de ação do espetáculo consiste em uma linha ininterrupta que liga todas as ações realizadas pelos atores, reunindo todos os elementos, as diferentes partes e objetivos, num único fecho, dirigindo-os para o objetivo geral (DAGOSTINI, 2007, p. 32-33).

[5] Ressalto que não pretendo realizar aqui um estudo detalhado acerca desses elementos, o que necessitaria de uma extensa reflexão sobre os mesmos. Para um conhecimento aprofundado sobre a Análise Ativa e seus elementos vide DAGOSTINI, 2007.

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