Curadoria

Artigo sobre curadoria nas artes e no teatro

22 de dezembro de 2014 Estudos

Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Resumo: O artigo aborda a curadoria de arte em uma interlocução com o pensamento de Hans Belting e Arhur C. Danto sobre O fim da História da Arte e suas implicações na visada da crítica. Expõe alguns aspectos das perspectivas que entrelaçam a curadoria, a crítica e o mercado de arte. Em sua parte final procura dar uma noção das possibilidades curatoriais no teatro que transitam entre os processos dos editais, entre os festivais, entre os artistas e a companhias de teatro.

Palavras-chave: Curadoria, O Fim da História da Arte, Crítica, Teatro

Abstract: The article discusses the curatorship of art in a dialogue with the thought of Hans Belting and Arhur C. Danto on The End of History of Art and its implications on the matter of criticism. It also exposes some aspects of the perspectives involving curators, critics and the art market. In the final part it looks for a sense of curatorial possibilities on the theater concerning the processes of the public notices, festivals, artists and theater companies.

Keywords: Curating, The End of History of Art, Criticism, Theatre

Curadoria

Tecer uma ideia precisa a respeito do que chamamos de curadoria é uma tarefa complexa. A meu ver esta noção ainda parece flutuar numa região de opacidade. Talvez a razão disto esteja mesmo na íntima relação entre a formação do curador e as formas dos trabalhos de arte. Pensar uma história da arte não se dissocia das transformações das formas e modos em que as obras criam suas inscrições e, talvez aqui neste ponto, no lugar dos possíveis discursos que se criam com as obras, a tarefa ou o lugar do curador seja vetorizado. Neste artigo articulo algumas noções sobre o contexto de transformação da arte entre o moderno e o contemporâneo, no que foi pensado como O fim da história da arte, com a intenção de iluminar o lugar da curadoria neste percurso. Em seguida, o artigo toma a forma da conversa que realizei com Valmir Santos e Manoel Friques sobre a curadoria no teatro. A intenção da escrita é a de provocar um modo de exposição do pensamento de ambos, ao mesmo tempo em que me coloco na posição do curador – um mediador cuidadoso.

O fim da história da arte e curadoria

Em 1983, Hans Belting publica pela primeira vez seu livro, O fim da história da arte? Um ano depois resume suas ideias em um ensaio e se acerca ainda mais da noção de que o fim referido se relaciona com o desmonte de uma determinada tradição formalista de arte pura ligada com as tradições acadêmicas. Em um intervalo de pouco mais de dez anos o autor publicou outra versão de seu livro, cujo título (sem a interrogação) atestava a certeza, não da dissolução da disciplina História da Arte, mas “do fim de determinado artefato, chamado história da arte, no sentido das regras do jogo”, porém afirmava “que o jogo prosseguirá de outra maneira” (BELTING, 2006, p. 9).

Belting salienta uma crise do que se poderia considerar como antiga história da arte constituída por um rígido esquematismo resultante da concepção temporal que separava Antigos e Modernos. O que constituiu, de certo ponto de vista, essas duas grandes categorias temporais foi a concepção de um tempo unitário, concebido como um todo orgânico. A historicização de estilos em evolução era algo que se dirigia nitidamente como a imagem de uma flecha temporal, numa direção ao progresso do sempre novo, construindo exatamente hierarquias de estilos em conexão com a inovação e alienação dos contextos humanos como, por exemplo, realizou Vassari em um modelo de análise biológico pautado e explicado pela noção de evolução.

Outro autor que vai lançar uma luz sobre a questão é Arthur C. Danto. Em Após o fim da arte, ele aponta para uma ruptura entre a arte moderna (1880-1964) e a arte contemporânea que acabou gerando uma descontinuidade. A questão expressa por Danto se refere a uma diferença entre as estruturas dos modos de arte, o que desfez as possibilidades de continuidade e gerou uma fratura: “As estruturas históricas anteriores definiam uma série fechada de possibilidades, das quais eram excluídas as possibilidades da estrutura posterior” (DANTO, 2006, p. 48). Assim, o autor entende que partir de 1964 a arte entra em um tempo pós-histórico, ou seja, um tempo em que as formas de arte não poderiam ser lidas por meio de narrativas mestras.

Pela perspectiva de Belting a antiga História da Arte alicerçada no progresso dos estilos com uma lógica interna sofreu sua primeira crise com o surgimento das vanguardas que, mesmo de modo ambíguo e não homogêneo havia formulado um discurso próprio de uma arte progressista. Antoine Compagnon (2010) nos adverte que as vanguardas nascem sob o signo de uma fissura com os primeiros modernos, como Baudelaire, para quem o tempo do novo é o presente/presente, que arranca o presente da catástrofe do amanhã, o imobilizando, e assim, comprometendo uma noção de progresso. Se para Baudelaire o tempo significa-se por meio de uma constelação do presente arrancada do fluxo histórico, para Rimbaud, ao contrário, o novo é o multiplicador do progresso. Deste modo, duas visões da história da arte coexistiam e se igualavam superficialmente na noção de vanguarda, problematizando a imagem de um todo na proporção em que agrupavam duas noções antagônicas.

O colapso das vanguardas que, conforme Belting emerge na década de 1960, momento em que a diluição do objeto e do conceito de obra revelaram a precariedade da noção de História da Arte em voga e de sua necessidade como discurso de enquadramento do evento artístico em um postulado a priori. É conhecido de todos o choque de Danto diante da arte pop, quando formula o entendimento que a arte passa para uma questão filosófica na medida em que não poderia mais ser distinguida, ou sofrer classificações por categorias puramente visuais. Sua teoria do fim da história da arte começa a ser engendrada, em parte significativa, pelo que as Brillo Boxes de Andy Warhol imprimiram como indiferenciação entre objetos de arte e meros artefatos, no que ele cunhou de “transfiguração do lugar comum”, ou seja, a transfiguração de objetos de uso cotidiano pelas pessoas “à condição de temas da arte elevada” (DANTO, 2006, p.143). Andy Warhol em Popismo escreve:

“Os artistas pop faziam imagens que qualquer pessoa que andasse pela Broadway reconhecia numa fração de segundo – quadrinhos, mesas de piquenique, calças masculinas, celebridades, cortinas de banheiro, geladeiras, garrafas de coca-cola – todas as grandes coisas modernas que o Expressionismo Abstrato tinha tentado com tanto empenho não notar.” (WARHOL e HACKETT, 2013, p.11).

Para o crítico, não havia mais direção para a ideia de arte.

A compreensão da complexidade desta nova arte demandava uma nova crítica, na visão de Danto, que pusesse em prática um pensamento sobre a pluralidade das manifestações artísticas. Um tempo em que não fazia mais sentido a eleição das obras. O que se pode perceber, tanto na arte quanto no discurso sobre ela, não é a delimitação de um fim decretado, mas a delimitação de um período no que se pode configurar como o final do modernismo nos anos de 1960. Muitas posições críticas assumiram um confronto em relação à linha hegemônica da crítica de arte, representada por Clement Greenberg. Para Thiery De Duve os anos de 1960 resgatarem algumas figuras das vanguardas históricas numa leitura kantiana em novas bases.

A crítica hegemônica também foi refutada por Rosalind Krauss no que ela nomeou de condição pós-midiática, fenômeno fundamentado na fagocitação capitalista. No Brasil, o crítico Mário Pedrosa chamou esta nova configuração que observava de “arte pós-moderna”, diferenciando-a do que animava a produção e o pensamento moderno. Pedrosa distinguia fundamentalmente uma dupla diferença nesta nova arte. Uma no plano dos meios em que se dava a predominância do suporte eletrônico, a outra, no retorno a uma realidade relacionada à sociedade de consumo. Assim a arte deixava seu campo delimitado de pura expressão em direção a uma ampliação na direção da comunicação. O drama da arte que se anunciava passava pela tentativa de manter sua autonomia diante da mercadoria. Nesta época Pedrosa cunhou a expressão “exercício experimental da liberdade” para falar de uma arte que se experimentava a si mesma em um aspecto não literal de natureza figurativa e que faz admitir a arte como mediação dos sentidos. Os antigos processos descritivos que revelavam as obras em minúcias começavam a ser problemáticos e ineficientes para falar das obras na medida em que estas, na arte que despontava, tornavam-se de certa forma indescritíveis. O impacto para a crítica foi radical e desafiador para Pedrosa que, como expoentes no Brasil, se aliou a Hélio Oiticica e Lygia Clark.

O percurso seguido pela arte, de sua fase moderna à contemporânea – se fundamenta pela condução em direção à vida. Os discursos passaram a incorporar as novas demandas, os novos formatos expressivos que, para além do objetual, trabalha com a transitoriedade, a efemeridade, a participação, a impermanência, as práticas colaborativas e relacionais, como no projeto Parangolés de Oiticica, em que não se trata de puro objeto, mas algo que só existe enquanto experiência-vestida-dançada, ou a arte relacional de Lygia Clark e suas operações para fora do suporte da tela. A ideia de contexto, rede, relação, troca, diálogo, conexão passam a ser, de alguma forma, questões presentes nas práticas da atualidade que, pode-se dizer, são desdobramentos da aventura desses artistas dos anos de 1960 e 1970.

Para a socióloga Raymond Moulin a arte contemporânea é como um selo que os agentes da arte conferem a um grupo de obras com características específicas. A autora admite um mercado de arte dividido entre aquele que se inclina sobre obras clássicas, historicamente datadas – arte antiga ou arte moderna –, que já entraram para o código social como patrimônio reconhecível (Moulin denomina-o como o mercado da arte classificada); e o mercado da arte contemporânea, em que o jogo especulativo é mais alto, pois o próprio estatuto do que venha a ser ou não arte e o que tem ou não valor de mercado, estão continuamente em negociação. A ideia de curadoria atual está em relação com estes questões.

Museu, curadoria, mercado e rede comunicacional

O princípio da curadoria está ligado com a criação dos museus que, em sua origem, se liga aos gabinetes de curiosidades que surgiram durante o Renascimento europeu, época em que a pintura era como uma janela para o mundo. Assim, “as pinturas e os desenhos eram colocados lado a lado (tendo apenas a moldura como meio de separação entre eles)” (CINTRÂO, 2010, p. 15). Não havia especialmente um curador, mas as obras eram expostas dentro de uma hierarquia de acordo com uma ordem de importância:

“Em primeiro lugar vinha a pintura de história (cenas bíblicas ou mitológicas, ou grandes feitos históricos), a seguir os retratos (de arquitetos, escultores, músicos ou atores), depois as pinturas de gênero, das naturezas-mortas e, por último, das paisagens.” (op. cit. p. 15)

O museu aparece na modernidade com a revolução francesa que tornou pública a coleção do rei e deu início ao processo de coleções de obras dos artistas. Os critérios de exposição dos gabinetes de objetos, muitas vezes pessoais, eram bem diversos dos atuais museus que cobrem atividades de documentação, organização e disposição de objetos relacionados com uma metodologia de arquivamento que ainda objetiva a conservação das obras.

A despeito do fato de a atividade curatorial estar originalmente ligada à conservação e exposição de acervos, nos últimos tempos ganhou novos contornos que, muitas vezes, imprime uma visão autoral às mostras. Em Uma breve história da curadoria, Hans Ulrich Obrist traça um quadro do surgimento e desenvolvimento da atividade e seu lugar distinto como profissão que passa a ocupar a partir dos anos 1960. Obrist constrói uma espécie de mito de origem de sua própria trajetória juntamente com nomes como Pontus Hultén, Herald Szeeman, Walter Hopps e uma série de outros curadores de renome internacional. O curador encontra no trabalho pioneiro desses articuladores a importância de suas relações com os artistas de vanguarda como uma chave que mudou os rumos tomados pela curadoria em direção ao seu profissionalismo e ao surgimento de um novo conceito.

Lembramos aqui do professor e crítico Luiz Camillo Osório que assumiu a curadoria do MAM RJ. O diferencial de sua curadoria é o fato de carregar sua experiência crítica com as obras e que em boa medida se alicerça no legado do exercício experimental de liberdade de Mario Pedrosa. Na visão de Camillo Osório desenvolvida em seu livro Razões da crítica ele estabelece uma relação entre a crise política e a da crítica, ambas pautadas pelas transformações dos espaços comuns, assim como destaca Jacques Rancière em sua tese da Partilha do Sensível. A noção de Rancière ressalta a existência de uma base estética na política, que diz respeito aos modos e acordos difundidos em como estar no mundo, tratando-a como uma estética primeira partilhada com a arte. Camillo Osório ainda resgata a presença da subjetividade e o livre jogo das faculdades da terceira crítica de Kant, para atestar um novo lugar da crítica e suas razões de existir. Seu adensamento nos espaços virtuais atesta novos lugares de discussão, de reflexividade e integração com a universidade.

Glória Ferreira ressaltou em entrevista concedida a Mauro Trindade que está havendo um deslocamento da crítica de jornal para uma crítica de catálogo que, para além de propor sentido para as obras, tentam legitimá-las no gosto do público e quiçá, contribuir para seu valor no mercado. Um exemplo de valorização recente é o Waltercio Caldas, um dos artistas brasileiros com maior visibilidade no exterior. De algum modo é possível dizer que existe uma relação direta entre a exponibilidade das obras e seu valor aurático para falarmos numa inversão nos termos de Walter Benjamin. O filósofo em seu famoso artigo sobre a reprodutibilidade técnica atesta que com esta, o valor de exposição das obras aumentam proporcionalmente à diminuição de seu valor de culto, o que lhes conferia uma aura nos termos da tradição. Ora, com a exponibilidade (Caldas é o artista com maior número de exposições no último quarto de década), o valor de mercado também cobre as mesmas dimensões.

Anne Coquelin localiza a criação do sistema de arte na modernidade industrial em que certas premissas como a do engajamento na ideia de progresso, a indexação no circuito de massa, o deslocamento da esfera da obra para a do produto e “o travestimento do produto industrial em produto estético”. Para a autora é um regime de consumo que rege o moderno com o crescimento da burguesia, a partir da segunda metade do século XIX e o debate que se abre sobre movimentos sociais, salários justos e direito à expressão. Com o declínio do academicismo os salões se especializam e se tornam independentes. Abre-se assim um mercado para o marchand-crítico que surge pela necessidade de julgamento especializado em direção ao público, do qual dependem a reputação e a venda das obras. O crítico-marchand contribui para a formação da imagem do artista e da obra em geral, como notadamente foi o caso da nomeação Impressionista por Louis Leroy. A existência de artistas independentes força as modificações da crítica numa tentativa de teorizar as novas formas plásticas.

Mas se para a arte moderna Coquelin vê um regime de consumo que acabou por distanciar o artista do público e fez surgir a figura intermediária do crítico-marchand, não se pode falar de um processo progressivo deste estado na arte contemporânea, que se fundamenta por um regime comunicacional. Mais do que implicações no mercado de arte é possível pensar sob a visada da aura comunicacional na arte. Coquelin divisa dois termos que distinguem a era contemporânea da arte: redes e interação. A ideia de rede indexa uma trama complexa em que não existem lugares fixos de entrada, mas uma pluralidade de pontos que, em termos de mercado significa uma pluralidade, não só de obras formando a realidade da arte, mas o surgimento de lugares em que a arte é atestada, como galerias e instituições. Outra complexidade se dá pelo fato de que a rapidez e profusão das informações caracterizam um saturamento da rede que não permite que se esteja fora dela e assim, passar uma informação em rede é o mesmo que fabricá-la. Se não existem garantias de que as informações constituam novos regimes de realidade é possível vermos a figura do colecionador como um ativo desta constituição.

Ampliando esta perspectiva de rede, Ricardo Basbaun ressalta que na contemporaneidade não se pode mais falar do artista e a sociedade simplesmente, mas sim, o artista e o museu, o artista e o circuito, o artista e o mercado, o artista e a crítica e a crítica e a história. É preciso construir um espaço para o trabalho que não é erigido unicamente na elaboração da obra no ateliê. Também se faz necessário compreender que o trabalho possui uma demanda crítica e que é importante produzir neste ambiente também com textos que defendam e articulem seu fazer enquanto artista. Construir a intenção do trabalho aproxima o artista do curador, de grupos de outros artistas que, por sua vez também se aproximam do curador, no sentido de construir eventos. Em entrevista a Suzana Velasco em 2010, o jovem curador Bernardo Mosqueira se aliou a tradição de Mário Pedrosa para dar sentido ao seu projeto crítico. O curador reuniu em sua casa, no Jardim Botânico, 47 obras de artistas de relativa visibilidade como, por exemplo, Raul Mourão e Marcos Chaves, escolhendo como título de sua exposição Liberdade é pouco, reivindicando um novo tipo de relação da arte com a crítica, convocando artistas, cujo trabalho poderia discutir até onde se pode ir com a criação, ou seja, uma discussão sobre a autorização ou autonomia do artista numa tentativa de aproximação de uma linguagem científica das possibilidades.

Conversas sobre processos curatoriais no teatro

As conversas que seguem foram realizadas com a finalidade de jogar alguma luz sobre as questões que giram sobre as práticas de curadoria no teatro.

Manoel Silvestre Friques é professor de Engenharia de Produção da UNIRIO, dramaturg e curador independente. Teórico do Teatro (UNIRIO) e Engenheiro de Produção (UFRJ). Faz Doutorado no Programa de História Social da PUC-Rio e é Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO. Trabalho no TEMPO_FESTIVAL entre 2009 e 2014, sendo responsável, ao lado dos curadores, pela idealização do Encontro Artes Cênicas & Negócios, iniciado em 2013

Valmir Santos é jornalista, pesquisador e crítico teatral com atuação desde 1992. Idealizador e coordenador do site Teatrojornal – Leituras de cena, desde 2010. Cobre festivais de teatro no Brasil, América do Sul e Europa. Mestre em artes cênicas pela Universidade de São Paulo, USP (2009). Integra comissões do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo e do Programa de Ação Cultural, o ProAC do Estado de São Paulo. Foi curador do Festival Recife do Teatro Nacional (2011) e consultor do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH, 2012). Membro da comissão do Programa Rumos do Itaú Cultural (2013-2014).

Com Manoel Friques

Dinah Cesare: Gostaria que você pudesse colocar sua perspectiva sobre como surgiu e se constitui o Tempo_Festival. Fiquei pensando a respeito da confluência ou encontro entre as trajetórias artísticas da Bia Junqueira, do César Augusto e da Márcia Dias e as características do Tempo.

Manoel Friques: O TEMPO_FESTIVAL é uma spin-off do RioCenaContemporânea – surgido pouco tempo (acho que dois anos) após a dissolução do último. Os três curadores-diretores do TEMPO já trabalhavam juntos no RioCena em uma equipe curatorial maior – e resolveram manter a parceria, propondo um novo festival. A passagem do RioCena para o TEMPO é uma passagem, por assim dizer, de transformação da oferta de festivais no Brasil, e no Rio em especial. Se o RioCena era um dos únicos festivais (se não o único, a ver) de artes cênicas, o TEMPO já encontra algo consolidado, havendo um Núcleo de Festivais Internacionais do qual integra em terreno carioca. Há que se dizer ainda que os três curadores-diretores desenvolvem suas trajetórias individuais paralelas ao Festival, sendo a Márcia excelente diretora de produção e consultora do tema em Brasília, o César, além de ator, gestor de espaços públicos, e a Bia cenógrafa e juri do SHELL.

Dinah: Tem um artigo da Gloria Ferreira em que ela começa apontando para a relação entre os títulos das exposições e mostras em meio ao contexto do trabalho de arte (na sua diversidade) e o caráter poético das significações que intencionam propor. Vendo os nomes dos festivais de teatro da cidade e do país de um modo geral o Tempo se destaca. Tem algo já no nome. Outro dia falamos sobre isso. Você acha isto pertinente? Tem algo com uma noção mais específica em termos curatoriais?

Manoel: O Tempo se difere justamente pelo recorte conceitual do Festival, que aponta duplamente para Processos Criativos e Diversidade Artística. Ele então já traça um viés curatorial no tema, você está correta. De certa forma, trata-se de algo mais desenvolvido do RioCenaContemporânea, que já trazia o TEMPO no seu bojo, no termo ConTEMPOranea.

Com Valmir Santos

Dinah Cesare: No que podemos chamar de mundo da arte, a prática curatorial é um elemento que cada vez mais tem sido entendido como uma das práticas incluídas na noção de artista. O Ricardo Basbaum lançou um livro chamado Manual do artista-etc em que ele aponta para algo da ordem do fenômeno-artista que se constitui no movimento entre a arte e os seus discursos, as instituições, as práticas colaborativas e relacionais da contemporaneidade, o público e o mercado. Acredito que nós podemos pensar esta noção no que diz respeito ao artista de teatro. Como você vê tal questão? Como tal fenômeno se manifesta em São Paulo? Você acredita que na esfera das Companhias isto seja mais visível?

Valmir Santos: Assim como o ato da crítica desdobra-se em dimensão artística, esta imbrica a curadoria, ação que por sua vez reverbera a criticidade. Apesar da natureza específica na aplicação fim dessas funções, elas se revelam cada vez mais dialógicas nas instâncias da criação, produção e recepção da obra cênica. Em São Paulo, a valorização incipiente do caráter processual dos espetáculos embrionários do teatro de pesquisa dilata a ansiedade pelo resultado, traço notório após a implantação da Lei de Fomento (2002). O espectador é instado a abrir-se para experimentar junto, a acessar pelo avesso. São comuns as trocas práticas e conceituais intergrupos, tendência mais espontânea do que formalizada. Ainda são poucas as instituições públicas ou privadas que sintonizam tais imersões ou fricções em seus projetos de relevo curatorial, como a Oficina Cultural Oswald de Andrade, o Centro Cultural São Paulo, algumas unidades do Sesc e o programa Rumos do Instituto Itaú Cultural, cujo edital de 2014 unifica as modalidades e convida o artista à autodeclaração, ou seja, a dizer a que veio e não submeter-se aos escaninhos convencionais arraigados e cerceadores. Vincular o artista do teatro ao pensamento crítico-curatorial tem a ver com o espírito de urbanidade – e portanto político – que caracteriza nossa época de reivindicação da cidadania. A arte pública para além do território.

Dinah: Ainda pensando na esteira da questão anterior, para os artistas contemporâneos há uma tremenda demanda de visibilidade. O curador é aquele que pode contribuir justamente para tornar visível a obra de um artista. O teatro ainda tem a particularidade de ser algo que se configura de fato quando exposto. Será que você podia apontar alguns aspectos que entendeu em suas pesquisas sobre a relação entre o estado e teatro neste sentido? Por exemplo, o que a cultura dos editais tem criado como espaço de representação e partilha?

Valmir: Em geral, a chamada contrapartida dos projetos executados por meio de leis de incentivo é falaciosa em vez de prospectiva. A maioria dos produtores e/ou artistas investidos da possibilidade de troca em níveis socioculturais pelo dinheiro público que lhe foi repassado atribuem a tarefa ao Estado e dissimulam. Inescapável lembrar exceções no âmbito da Lei de Fomento quando a proposta do grupo se mostra inventiva e o público interessado (seja amador, em formação ou morador, não importa) pode ser enredado nos processos criativos de maneira direta ou indireta. O que não exime os núcleos artísticos de falharem no intento de troca. Os 12 anos de vigência do programa municipal refletem propensão a essas redes de criação em diferentes zonas da cidade, inclusive elaborando formas para conteúdos locais. Esses compartilhamentos são mais bem-sucedidos quando a presunção artística é intocável. A teatralidade emerge independente de carências comunitárias de outro naipe. Já houve intervenções de massa que mobilizaram vilas e bairros. Penso que após as manifestações de junho de 2013 o exercício da curadoria em teatro deveria ponderar essas ações/ocupações corais, performativas.

Dinah: Outra questão em que tenho pensado gira em torno do que é justamente partilhado e a formação mesmo de uma História da Arte em que a história das obras se mistura com os discursos criados sobre arte. Mas acontece que quando mais ocasionalmente nos referimos ao termo arte, não incluímos a termo teatro. Mesmo em nossa época cansada de hibridismos mal armados, ainda não conseguimos pensar por intensidades e sim por classificações. Como você pensa esta questão? Como o que se mostra/mostrou em teatro se confunde ou constitui sua historicidade? E no caso mais especificamente, por que não é tão nítida a ideia de curadoria em teatro, a não ser quando estão em jogo os festivais?

Valmir: “Toda forma é um rosto que nos olha”, escreveu certa vez o crítico de cinema francês Serge Daney. A historicidade pode vir inscrita na cena pelo formato, tema e procedimento de criação que adota. É flagrante neste século 21 a ascensão da criação colaborativa, síntese talvez de nossa época de clamar por horizontalidades, tal qual a criação coletiva incidia politicamente nos anos de chumbo (1964-1985) com a voga de um inimigo explícito.

Sua argumentação toca em questão-chave: a curadoria encampada nos moldes das artes visuais tem pouca sustentação no meio teatral porque isso implicaria uma mirada justamente histórica, organizadora de contemporaneidades e linhas de tempo das quais os festivais, em geral, se ocupam genericamente, sem maiores incisões ou convicções autorais para trazer à luz uma leitura instigante, à maneira das inquietações pressupostas no ambiente de uma Bienal de Artes de São Paulo, que na edição de 1991 foi de extrema generosidade para com o teatro ao aportar a Trilogia antiga (As troianas, Medeia e Electra) assinada pelo encenador romeno Andrei Serban, além de debutar no país o grupo catalão La Fura dels Baus em sua fase áurea, com Suz/o/suz. Tudo isso graças à percepção ampliada do então curador João Cândido Galvão (1937-1995), o mesmo que irradiou a noção de oficinas culturais no Estado e foi assistente de Robert Wilson na primeira incursão do diretor norte-americano no país, em 1974, com a ópera A vida e a época de Joseph Stalin. Faz falta a pertinácia e a capacidade articuladora de um Galvão na esfera pública, por exemplo.

A maioria dos festivais parece refém da atualização do que vai pelas temporadas nacional e internacional, quando contribuiriam mais se encontrassem sua própria narrativa, dosando a reinvenção de caminhos. A rigor, o Brasil não carece mais de ver, a todo custo, os grandes nomes do teatro que marcaram a segunda metade do século XX. Ao contrário, uma curadoria de artes cênicas pode desfrutar de carta branca para errar com mais convicção – como a arte preconiza – do que acomodar-se nas apostas “seguras”.

Referências bibliográficas:

BASBAUM, Ricardo. Manual do artista – etc. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013.

BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. Trad: Rodnei Nascimento. São Paulo: Cosac Naif, 2006.

CINTRÂO, Rejane. “As montagens de exposições de arte: dos Salões de Paris ao MoMA” in Sobre o ofício do curador. Alexandre Dias (org). Porto Alegre: Zouk, 2010.

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. Trad: Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

DE DUVE, Thierry. Kant after Duchamp. The MIT Press; Reprint edition: February 6, 1998.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea; uma introdução. Trad: Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins, 2005.

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad: Cleonice P. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

OBRIST, Hans Ulrich. Uma breve história da curadoria. Trad: Ana Resende. São Paulo: BEI Comunicação, 2010.

WARHOL, Andy e HACKETT, Pat. Popismo: os nos sessenta segundo Warhol. Trad: José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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