Fale sobre mim

Estudantes e professora na experiência de falar de si

24 de abril de 2020 Processos

O espetáculo Fale sobre mim nasceu do encontro entre seis adolescentes e sua professora de teatro, que aqui escreve. O grupo começou a se reunir em caráter extracurricular em agosto de 2018, numa escola municipal localizada no Conjunto Urucânia, periferia da Zona Oeste do Rio. Dos primeiros encontros, compusemos uma cena de 15 minutos – criada, a princípio, para ser apresentada no Festival de Teatro de Alunos da Rede, o FESTA 2018, promovido pela Secretaria Municipal de Educação. Naquele ano, a comunidade passava por um período violento, e, de certa forma, saber da existência do festival ativou em nós um senso de coletividade e um foco energético frente às situações-limite que compartilhávamos.

Minha proposta foi abrir espaço para que os adolescentes falassem de si e elaborassem suas narrativas. Como professora, desejava conhecer o contexto dos alunos e escutá-los. A pesquisa teve como foco a investigação de possibilidades de atravessamento do real em cena a partir do trabalho com autobiografia e da valorização de seus arquivos de vida.

Em 2019, o processo foi ganhando novos contornos. Integravam o elenco: Brenda Laura, Maria Paula, Análya Britney, Caio, Lucas e Wilson Ruan – adolescentes com idade entre 13 e 14 anos. Paralelo a isso, fui aprovada no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Artes Cênicas da UNIRIO e recebi uma provocação das professoras Johana Albuquerque e Rosyane Trotta: criar uma cena autoficcional que trouxesse minhas atuais inquietações tanto pessoais quanto profissionais. Comecei a estudar outros modos de registrar minha prática artístico-pedagógica. Agora, lá estava eu, fazendo o mesmo exercício que propus aos alunos, colocando corpo em ação, debruçando-me sobre diversos materiais de ordem pessoal e compondo com eles. Sentia que nossas cenas faziam parte de uma mesma poética, sem que fossem necessariamente costuradas ou interligadas. Tínhamos, portanto, o meu solo e a cena dos alunos, que junto somavam 55 minutos. Pelo fato de não ter muitas referências relacionadas ao que estava fazendo, cheguei a questionar o fato de estar em cena junto a eles, temia que pudesse soar como um ato egocêntrico.

A concepção da obra foi se delineando a partir dessas e de muitas outras inquietações: Como escutar a juventude e suas narrativas? Como desmecanizar as relações formais estabelecidas no espaço escolar? Levando em conta que nosso encontro (professora-alunxs) aconteceu na escola, como podemos performar nossas subjetividades para além dela?

As composições cênicas partiram de uma perspectiva pessoal para falar de um coletivo. Há um posicionamento assumidamente decolonial, que busca valorizar os saberes e a potência artística dos alunos, alunas e professores de escola pública da periferia – sujeitos frequentemente excluídos da cena social e política do país, com pouquíssima representatividade nas narrativas hegemônicas. Nossa escolha pelo uso de material autobiográfico se firmou como um campo de investigação que legitima as experiências de vida como saberes culturais. Segundo Jorge Larrosa, ao “ex-por” sua vulnerabilidade, o corpo se permite ser atravessado por experiências. Esse movimento de disponibilidade e receptividade é fundamental para que o sujeito da experiência produza afetos e esteja aberto aos encontros. Larrosa afirma que no exercício de falar de si, o sujeito se percebe parte de um coletivo, os contornos entre o privado e o público parecem se dissolver e há um nítido compartilhamento de experiências e pontos de vista de uma determinada geração.

Os alunos.
Caio Nunes, Analya Britney, Wilson Ruan Primo, Brenda Laura Coelho, Lucas Reis e Maria Paula dos Santos. Foto: Luiza Rangel.

A dramaturgia de Fale sobre mim está estruturada em dois atos. O primeiro ato é o solo: uma palestra-performance na qual eu, Luiza, professora e diretora do espetáculo, apresento os conceitos estruturais da pesquisa ao mesmo tempo em que narro os estranhamentos e as alegrias dos primeiros anos como professora de escola pública. A palestra é atravessada por relatos pessoais e há o uso de documentos como: cartas de alunos, desenhos, áudios de whatsapp e vídeos. Há, portanto, um jogo referencial. Já no segundo ato, são os adolescentes que entram em cena, expondo seu ponto de vista sobre a escola, o bairro e apresentando-se a partir de si mesmos. Ou seja, os documentos passam a ser os próprios estudantes – que assumem a cena com seus corpos-testemunhos. A cena deixa de citar o real, abrindo-se para que uma fatia da realidade irrompa. A dramaturgia deste segundo ato, escrita a partir das narrativas dos adolescentes, está estruturada em três partes: Nascer, Morar, Crescer. Apesar desta sequência de verbos sugerir uma aparente linearidade, o trabalho não pretende exatamente mostrar uma trajetória linear nem determinista. A dramaturgia se constitui de incerteza, suspensão, projeções, sonhos, pesadelos, desabafos, expõe fragilidades e forças, explicitando um terreno de instabilidade intrinsecamente humano. Falamos de uma localização específica sob diferentes perspectivas. No primeiro ato, alguém que passa muitas horas de seu dia no Conjunto Urucânia, mas que vem do outro lado da cidade – a professora. Depois, alguém que ocupa esse lugar enquanto morador, que habita, que pertence – as alunas e alunos.

Fale sobre mim carrega em si a noção de um trabalho em processo, é permeável e aberto à passagem do tempo. Sua dramaturgia se atualiza e incorpora em si a própria vida. A adolescência, os encontros, os conflitos familiares, a relação com a escola e as experiências dos corpos que ali se apresentam seguem acontecendo e transformando seus percursos. Além disso, percebe-se que o processo de criação, por si só, gerou movimento sobre as vidas dos envolvidos.

Depois que eu comecei a fazer essa peça, eu pedi a minha mãe para me dar uma prova de que realmente sou filha dela. Ela me mostrou um exame de pré-natal. Mas quando eu levei o exame para o ensaio, o Wilson me disse para conferir a data. Eu nasci em 2006, o exame é de 2007. Eu continuo sem resolver essa questão. (Depoimento da aluna Brenda Laura, 13 anos.)

Depois de três anos acumulando todo esse material – cartas e desenhos dos alunos – eu decidi escrever uma dramaturgia sobre a escola, mas sempre que começo a escrever, percebo que acaba se tornando uma peça sobre violência, então, eu paro. (Depoimento da professora Luiza, 27 anos.)

Esses dois trechos da dramaturgia talvez compartilhem o interesse pelo lugar de inacabamento da obra, expondo uma autorreflexão quanto aos desdobramentos do processo criativo. O espectador não está apenas diante dos autores da obra como também diante de suas indagações.

Trabalhamos bastante sobre as opressões cotidianas que nossos próprios corpos vêm testemunhando. Tenho me interessado especialmente pelo modo como os envolvidos no processo colocam-se em cena, porque somos, antes de tudo, agentes de discursos. À poética desta encenação, não interessa tanto uma habilidade técnica de atuação e expressão vocal, nem mesmo um português erudito. Interessa a presença desses corpos (e seus testemunhos) e a dimensão artística e social que o trabalho pode alcançar. Certamente, corpos não tão habituados a estar em cena e que justamente por serem o que são, oferecem material plural, vivo e diverso, além de evocar valiosas contribuições epistemológicas. A presença dos estudantes e da professora em cena é uma proposta estética e política.

Brenda Laura durante o processo de criação.
Brenda Laura durante o processo de criação. Foto: Luiza Rangel.

A pesquisa de Fale sobre mim dialoga com os estudos decoloniais – teorias que problematizam as concepções dominantes e sugerem uma descentralização de narrativas. No Brasil, aprende-se desde cedo que uma vida pode ter valor diferente de outra, a depender de sua condição social, econômica e do poder institucional ao qual pertence. É a ideia de descartabilidade das vidas humanas, trazida pelo autor Walter D. Mignolo – uma das figuras centrais do pensamento decolonial latino-americano. Lembrar torna-se, portanto, um ato de resistência à lógica da colonialidade, cujo projeto apagou nossas memórias ancestrais e centralizou narrativas, suprimindo outras tantas.

Ao meu ver, autores como Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Boaventura de Souza Santos e Lila Bisiaux nos convidam a pensar os estatutos da arte de forma crítica e apontam possíveis caminhos e ações neste sentido: decolonizar as teorias, fazer surgirem outros paradigmas, incorporar as vozes periféricas e os movimentos sociais a nossas pesquisas e democratizar os pontos de vista. Sob esta perspectiva, nossa dramaturgia tenta dar espaço a experiências que foram invisibilizadas, tensionando tempos históricos, propondo uma des-hierarquização dos saberes e privilegiando a via da experiência sensível. Daí a importância de enfatizar o quanto os estudos decoloniais contribuíram para a elaboração de um pensamento crítico no decorrer do processo. Não se trata de negar todos os cânones e conhecimentos hegemônicos, mas de dar cada vez mais credibilidade às práticas de conhecimento não científico e aos saberes de teor prático.

O teatro do real, nomenclatura dada por Maryvonne Saison, se diferencia de uma tendência atual do ocidente de espetacularização do privado para politizar o real e expandir a coletividade e a sensação de pertencimento. Algumas questões éticas sempre irão circundar os trabalhos com autoficção. Como falar de experiências de violência em um lugar que já é logisticamente depreciado na cidade? Como cuidar eticamente dessas escolhas, entendendo o forte vínculo que a cena documental constrói com o público? Como fortalecer as narrativas do espaço escolar sem julgá-las segundo parâmetros estanhos a elas? Ainda são muitas as questões que nos movem.

Em 14 de dezembro de 2019, Fale sobre mim foi apresentado no Palcão da UNIRIO, Urca, Rio de Janeiro. Apesar de termos suspendido nossos encontros em março de 2020, em virtude da pandemia que acomete o país, ainda pulsa em nós o desejo de perfurar a cena teatral com nossos símbolos cotidianos e inaugurar outros modos de ver o mundo. Para mim, a criação tem a ver com tudo isso, com autoralidade e resistência. O teatro que nasce nas escolas públicas da periferia tem fertilizado a cena da cidade, apesar de ser um tanto marginalizado enquanto forma artística. Falamos a partir de nosso chão, daquilo que nos dá substância. E acredito que um dos maiores desafios do teatro contemporâneo seja assumir o compromisso de reunir uma pluralidade de perspectivas sobre nosso país. Porque, é sabido, que a ausência de certas narrativas provocou lapsos na dramaturgia ocidental ao longo da história.

Falem sobre nós.

 

Referências bibliográficas

BISIAUX, Lila. Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 8, n. 4, out./dez. 2018

BULHÕES-CARVALHO, Ana Maria; CARREIRA, André. Entre mostrar e vivenciar: cenas do Teatro do Real. Sala Preta, São Paulo. Eca – USP,Vol.13

FERNANDES, Sílvia. Experiências do real no Teatro. In: Revista Sala Preta. Revista de Artes Cênicas, v. 13, nº2. São Paulo. Departamento de Artes Cênicas. ECA/USP, 2013.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Autêntica Editora. Belo Horizonte, 2016.

LEITE, Janaina Fontes. Autoescrituras performativas: do diário à cena. São Paulo. Perspectiva. 2017.

MIGNOLO, Walter D. Reconstitución epistémica/estética: la aesthesis decolonial una década después. Calle 14. Revista de Investigación en el campo de arte. 2019.

 

Luiza Rangel é diretora, atriz e professora de Artes Cênicas da rede municipal do Rio de Janeiro. É graduada em Direção Teatral pela UFRJ e Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ensino de Artes Cênicas pela UNIRIO. Integra o Coletivo Errante desde 2013. Foi indicada ao 2º prêmio Yan Michalski, da Revista Questão de Crítica, pela Direção do espetáculo rINOCERONTEs (2015), além de premiada nesta mesma categoria no 28º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau.

Foto em destaque: Davi Palmeira.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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