Gota d’água preta

Crítica da peça de Chico Buarque e Paulo Pontes, encenada por Jé Oliveira

26 de outubro de 2019 Críticas

Agô!

Exu é mojubá!

Sobre erros, acertos e tentativas. Mais uma tentativa-erro-acerto de tecer uma escrita sobre algo que me afeta, sem parecer afetada.

Quando será a nossa gota d’água? A partir dessa pergunta não retórica mergulho no Brasil. O povo preto em diáspora sempre esteve armado e há um tempo (muito tempo) vem escancarando os dentes. Armado até os dentes. A palavra que bate, dilacera, espanca é transformada em ato, em grito, em gesto, em música e é na estética e na força da mulher e do homem preto que Gota d’água {preta} se dá.

Foto: Evandro Macedo.
Foto: Evandro Macedo.

Que estética é essa? Que modo de atuar é esse? Que voz é essa, que é corpo? Que corpo é esse, que é voz?

A história é contada, majoritariamente, por mulheres sobre a mulher Joana-Juçara, mas que poderia ser Catarina, minha mãe. A dor e a força no corpo preto, no corpo preto da mulher Joana-Juçara-Catarina. Saliento que não existe aqui uma tentativa de encapsular todas as mulheres pretas no estigma do sofrimento e do abandono e muito menos uma tentativa de romantizar a força dos corpos pretos. Gota d’água {preta} é um ebó. A encenação-ritual, como de praxe, em roda. Pede licença, reverencia, canta, dança, fala, fala, fala… A oralidade.

É importante que se escute. É importante que todos os microfones estejam e sejam ligados, mas caso não estejam: a voz vai ressoar do mesmo jeito, pois o nosso corpo foi constituído também a partir de milhares de microfones desligados, quebrados, “mutados”, criticados diariamente durante quase 400 anos e que reverbera na contemporaneidade. Jasão-Jé segurou durante alguns minutos o texto sem estar microfonado, porém essa voz que habita o corpo de um homem preto e que, em alguma medida, aparentemente não se abala, sustenta, segura, mantém, coloca um pouco mais de força, um pouco mais e projeta. Quando o som da voz que habita o corpo preto de Jasão-Jé volta ecoar pelas caixas amplificadoras do edifício teatral, o corpo preto de Jasão-Jé fala aliviado. Fazer força desmedida cansa. Eu quero microfones ligados!

Foto: Sérgio Silva.
Foto: Sérgio Silva.

A voz de Joana-Juçara dança e o corpo de Corina-Aysha canta. Abrir os canais sensoriais para que as múltiplas narrativas que se desdobram na encenação proposta pelo multiartista Jé Oliveira é fundamental para perceber/sentir que as relações e o desenho cênico são mais condizentes com a vida do que com a artificialidade da marca esvaída de viço. A vida exala por todos os poros, a morte coabita esses mesmos poros. Reivindicamos a vida, o assassínio não pode ser um paradigma para os corpos pretos. Marcado pelo território, Gota d’água {preta} é um jorro, um gozo musical. O Rap, o Funk, a gota d’água, o Rap, a gota d’água, a gota d’água, o Samba, quebrada de São Paulo, perifa do Rio de Janeiro, Brasil! O território como marca da construção corporal e vocal. As escolhas estéticas atravessam o corpo comprometido com o seu tempo, com seu povo, com sua quebrada. O riso, às vezes, escapa em meio ao choro e à indignação, a gente ri chorando. A gente canta suspirando e a gente sente o mundo girar a partir das tranças, braços, pernas, saia e peitos de Corina-Aysha.

O entrelaçamento estético-poético-político realizado em Gota d’água {preta} traz à superfície questões pungentes que assolam, ainda hoje, o nosso povo. Mesmo sem mencionar, é quase inevitável não pensar em Preta e Sidney Ferreira (ativistas do MSTC que ficaram encarcerados, junto com outros mais, por 109 dias), é inevitável não pensar nos corpos pretos que são alvejados diariamente, na estigmatização e na deslegitimação do corpo preto ante as produções estéticas. Por isso, se faz tão necessário que as histórias sejam escritas/adaptadas e contadas por nós mesmos, povo preto.

Foto: Sérgio Silva.
Foto: Sérgio Silva.

Não posso deixar de mencionar a personificação da estrutura racista, fascista, machista e elitista na qual estamos inseridos e que, no espetáculo, aparece na figura de Creonte-Bolsonaros-SilvioSantos. O personagem é brilhantemente interpretado por Rodrigo Mercadante, que em um momento emblemático junto ao proscênio vocifera atrocidades e a plateia (os que ouvem) sangra e grita; os anestesiados pelas convenções (teatrais) ou pela sensação de impotência, silenciam. Sobressalto que quanto à oração anterior não faço juízo de valor, sangrei. Joana-Juçara-Catarina sangrou. O èjè (sangue), seja ele verde ou vermelho é portador de axé, e é a partir dele que a energia vital individual e coletiva é sustentada. Se o sangue de um se esvai covardemente, há um enfraquecimento da comunidade. Em Gota d’água {preta}, repercutem, no mínimo, três possibilidades de fortalecimento: o atabaque, o afeto e o enfrentamento coletivo, o enfrentamento coletivo, o enfrentamento coletivo… o enfrentamento, o coletivo, o enfrentamento coletivo!

Laroyê, Exu!

Ogunhê, Ogum!

Juliana França é cria de Japeri, atriz e Mestra em Filosofia.

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