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Notas sobre o processo de criação do espetáculo O figurante

31 de outubro de 2016 Processos

 

A figura

A temática de O Figurante surgiu algum tempo antes do processo de criação do espetáculo, acidentalmente sugerida pelo crítico Rodrigo Monteiro em sua análise sobre Shuffle, peça que dirigi com Julia Bernat em 2012 e que segue atualmente no repertório da companhia. Ainda hoje não me parece claro se seus apontamentos indicam algum juízo de valor embora o texto, no geral, não demonstre muito apreço pelo projeto.

Naquele ano, estávamos começando a pesquisar um estilo de interpretação mutável, no qual o estado do ator transitasse constantemente entre sujeito e personagem, a ponto de fazer a plateia duvidar da autoria daquilo que é dito ou realizado em cena. Sobre a peça, Monteiro escreve: “A questão que lhe é desafiadora é o fato de seu personagem ser fluído demais. (…) Há uma figura (uma ou mais?) e o fato dela ser interpretada por um ator não reserva (nem a ele, nem ao público) garantias suficientes de que é uma (ou mais) figura(s) masculina(s)”.

Ainda que os comentários de Monteiro sobre gênero sejam questionáveis, sua percepção sobre a fluidez do personagem é correta. Como nossos espetáculos sempre abordaram tensões entre ficção e realidade (entre o ensaiado e o improvisado), nunca nos pareceu interessante encontrar uma concretude entre sujeito e personagem, mas sim indefini-lo no meio-termo destas duas instâncias. Por este motivo, batizamos nossa pesquisa de “figura”, tal qual denominou Monteiro. Continuamos investigando este estado, em maior ou menor grau, nos espetáculos seguintes da companhia, priorizando as abordagens de Maria Lúcia Levy Candeias acerca da “fragmentação do personagem”.

 

O figurante

A “figura” – termo advindo das artes visuais e, portanto, pertencente ao âmbito da forma pictórica – quando atrelada ao trabalho do ator, pressupõe uma condição de ação. Numa óbvia associação de palavras, chegamos à seguinte disposição:

  1. a) O ator é “aquele que atua” (que pratica uma ação);
  2. b) O ator, no contexto da “figura”, é “aquele que pratica a ação de figurar”;
  3. c) “Aquele que pratica a ação de figurar” é um figurante;
  4. d) O ator, neste contexto, pratica a ação do figurante

Esta conclusão, é claro, não deve ser entendida literalmente. O que importa é que a ideia do figurante nos serviu como metáfora ideal para aquilo que almejávamos na interpretação do ator. Explico melhor: o figurante não pode ser considerado um personagem (ele não tem fala nem objetivos). Por outro lado, sua condição não é de sujeito, afinal, ele está à serviço de uma ficção (e não pode fazer o que bem entender). O figurante encontra-se, portanto, num limbo entre ficção e realidade, entre personagem e sujeito.

Do ponto de vista da nossa pesquisa, a descoberta deste princípio nos foi bastante útil, visto que as intenções que até então apenas intuíamos, começaram a criar algum tipo de materialidade, isto é, identificamos na figura do figurante um estado semelhante ao que pretendíamos elaborar na interpretação do ator.

 

A forma

Em O Processo (peça que apresentamos em 2014, a partir da obra homônima de Franz Kafka), a questão da figura já se encontrava bem aparente. Como era um espetáculo de improvisação baseado numa narrativa sólida, os atores não tinham tanta liberdade para fugir da trama. Sendo assim, para o espectador, não estava claro se os atores estavam seguindo o livro de Kafka ou se propunham um jogo no calor do momento. No entanto, eu sentia a necessidade de montar um espetáculo que colocasse explicitamente a ideia do figurante em cena.

Na época eu estava estudando efeitos científicos e imaginando possibilidades cênicas com base em suas especificidades. Um deles me chamou atenção: o Efeito Droste que, em outras palavras, é um efeito de recursividade. O fenômeno é prioritariamente imagético e ocorre quando uma imagem (figura) é repetida em menor escala dentro da própria imagem (figura). Isto se repete indeterminadamente, criando uma espécie de “infinito pra dentro”. No Efeito Droste, é impossível delimitar seu fim; o olho humano não é capaz de perceber a transição entre a definição e o borrão. As imagens diminuem de tamanho até não haver mais resolução.

Dentre todos os efeitos, este me pareceu potencialmente mais teatral. Não que se tratasse de uma novidade no âmbito do fazer artístico – afinal, o Efeito Droste foi amplamente explorado no cinema, nas artes plásticas, na música e na literatura – mas sua transposição para cena curiosamente dialogava de maneira direta com a nossa pesquisa.

Na organização da recursividade, sempre que há uma imagem em menor escala localizada no interior desta mesma imagem em maior escala, podemos dizer que há dois planos: um em maior evidência do que o outro. Neste sentido, uma imagem é figurante da outra. Ou melhor dizendo: uma imagem é “figurante” de sua mesma imagem “protagonista”. Ao aprofundarmos a visão, a imagem que estava em segundo plano passa para o primeiro e assim sucessivamente.

Existem dois modelos de Efeito Droste: aquele cuja repetição de imagens é idêntica e aquele em que podemos notar pequenas diferenças, quase imperceptíveis a olho nu. O escritor americano Douglas Hofstadter chama este último de “volta estranha”: um jogo de movimentação do olhar, permeado por diferenças e repetições, em que, quanto mais se adentra, mais expostas ficam as desigualdades. Num exemplo prosaico, é como se as imagens do jogo dos sete erros não fossem dispostas lado a lado, mas uma dentro da outra. Me interessei em descobrir como trabalhar estes efeitos de recursividade na criação teatral, a fim de dar a ver sua teatralidade.

Embalagem de 1904 da marca de chocolates holandesa Droste.
Embalagem de 1904 da marca de chocolates holandesa Droste.

A narrativa

A estrutura narrativa inicial é relativamente simples: um ator que, contra sua vontade, acaba se tornando figurante, é convidado a fazer uma peça chamada O Figurante, que conta a história de um ator que, contra sua vontade, acaba se tornando figurante…, e assim por diante.

A princípio, nosso primeiro impulso era seguir esta narrativa linearmente. Prevendo esta possibilidade, concluímos que, no instante em que a peça realiza sua primeira “volta estranha”, só nos restaria a repetição da narrativa, momento este em que poderíamos desenvolver as diferenças. Para o espectador, porém, não seria uma tarefa muito agradável acompanhar uma repetição eterna do espetáculo. Isto quer dizer que, se levássemos ao extremo a forma da narrativa, a peça não teria fim, ao menos que o público abandonasse a sala, cansado do moto-contínuo.

Assim, eu e Luiz Antonio Ribeiro (o dramaturgo) dividimos a peça em dois atos. Começamos contando a história deste figurante (seus desejos, suas frustrações, suas dúvidas etc.). No fim do primeiro ato, a plateia descobre que tudo o que foi visto até então se tratava da peça que o ator estava ensaiando, e não sua história de vida, como a levamos a crer.

Os acontecimentos do segundo ato podem ser interpretados de dois modos: como uma continuidade natural do primeiro ato, ou como uma grande fragmentação deste. A narrativa se confunde intencionalmente e, assim como no Efeito Droste, já não é mais possível enxergar delimitações; o que é o espetáculo real, o que é o espetáculo ficcional dentro do real, o que é o comentário do espetáculo real ou comentário do ficcional, tudo isto se perde e o sentido mais amplo da peça já não pode ser dado por nós, mas pelo próprio espectador.

Buscamos inspiração no filme “Mulholand Drive” (Cidade dos Sonhos), do diretor norte-americano David Lynch, para executar esta separação brusca entre os atos. Tal qual a obra cinematográfica, em O figurante, o espectador deixa de ter algo a que se apegar e se vê obrigado a estabelecer ligações imprevisíveis.

 

A metalinguagem

É evidente que um espetáculo que “morde a própria cauda” é essencialmente metalinguístico. Posso dizer, inclusive, que os efeitos de recursividade da “volta estranha” também apresentam traços de metalinguagem, já que a imagem/figura está permanentemente praticando um exercício de autorreferência.

No primeiro ato, que podemos considerar mais tradicional, a metalinguagem quase não acontece na forma, mas no conteúdo (um ator interpretando um personagem que, como ele, é ator). Ao voltar-se para si mesma no segundo ato, a peça se trans-forma, trazendo à tona toda a metalinguagem oculta que até então só dizia respeito ao conteúdo.

Outra característica importante é que, na transição entre atos, o espetáculo deixa de se restringir ao campo ficcional e invade esferas da realidade. O personagem, cujo nome ainda não havia sido citado, passa a adotar a alcunha real do ator Pedro Henrique Müller, e outro nomes da ficha técnica aparecem com esta mesma finalidade.

Para que a metalinguagem pudesse ser desenvolvida através desta narrativa, optamos por apresentar todo o caminho que um espetáculo percorre após sua estreia: a assimilação das referências feita pelo público, a crítica, o prêmio e a consagração, sendo esta última uma espécie de anti-consagração (ou a consagração de um figurante), uma aceitação de seu lugar no sistema, por mais hierarquicamente inferior que esta posição possa parecer.

Em determinada cena, expomos abertamente as referências artísticas das quais nos servimos para criar o espetáculo. Demonstramos para plateia, quase que didaticamente, como nos apropriamos do trabalho de outros artistas (Charlie Kaufman, Ítalo Calvino, Georges Perec, David Foster Wallace, Samuel Beckett, Lydia Davis, William Shakespeare, René Magritte, entre outros) e ironicamente pontuamos o quanto esta busca referencial não significa muita coisa para a compreensão da peça. Queremos assim ressaltar que, para o público, de nada serve o acesso às referências corretas do trabalho, já que cada espectador possui seu arcabouço particular de conhecimento e a autoria das ideias tampouco podem ser identificadas, como afirmamos em uma das falas da peça: “O Charlie Kaufman deve ter tirado isso do Shakespeare, que por sua vez deve ter tirado isso de outra pessoa”.

Na cena seguinte, convidamos a crítica Daniele Avila Small para escrever um texto sobre os problemas e os méritos do espetáculo, para ser lido no palco. É interessante perceber como esta cena é capaz de produzir novas camadas de interpretação pois, uma vez que o texto comenta a peça como um todo, em alguma instância, ele se autocritica. E, se porventura, outro crítico se destinar a escrever sobre a peça, ele precisará considerar o texto de Avila Small, fazendo uma “crítica da crítica”. Ademais, a cena se coloca no mesmo lugar da figura (entre ficção e realidade): o texto, que foi concebido externamente, quando posto em cena, vira parte integrante da peça e é imediatamente ficcionalizado, fazendo surgir um gênero incomum, um tipo de “crítica cênica”.

 

A voz

Para dissecar a “figura do figurante”, foi preciso partir de um princípio básico: não há figurante se não houver protagonista. Como nos propusemos o desafio de trabalhar esta questão num formato de monólogo, o espetáculo brinca de alterar estes dois estados, gerando um paradoxo: no palco só há, obviamente, um único ator que, diante das circunstâncias, é o protagonista da peça, apesar de interpretar um figurante.

A trama da narrativa, no entanto, exigia a aparição de outros personagens. Para que não houvesse nenhum tipo de destaque desta figura (afinal, o figurante é o personagem principal), fiz uso de alguns recursos cênicos com este propósito: além de uma atuação pouco expansiva, a inserção dos outros personagens se dá através de vozes em off, todas interpretadas também por Pedro Henrique Müller. O ator não se sobressai entre as vozes, mas ao contrário, submete-se a elas.

O modo como as vozes são dispostas em cena exibe um dispositivo, no meu entendimento, bastante teatral. Os áudios foram gravados de antemão e cada faixa representa uma cena. O ator precisa dar conta de dialogar com vozes que ingressam mecanicamente e que não se importam com os imprevistos que podem se suceder no palco. O espectador que assiste ao espetáculo mais de uma vez consegue observar pequenas diferenças de uma apresentação para a outra, o que nos remete novamente ao Efeito Droste.

A única voz que não pertence ao ator é a de José Mayer, que surge como contraponto à de Müller, respeitando a dualidade figurante-protagonista. Como o espetáculo retrata a realidade de um figurante inserido no mercado publicitário, desejávamos uma voz que fosse “comercialmente reconhecida” pelo público. Dado que Mayer é um ator de televisão extremamente popular no Brasil, sua presença (mesmo que em áudio) na peça é muito conveniente. A expressão de sua voz não é uma expressão qualquer. Ela está intrinsecamente gravada no imaginário do espectador brasileiro e, por isso, é carregada de símbolos. Um dado de curiosidade: durante o processo de criação do espetáculo, soube que Mayer orgulha-se de nunca ter filmado uma propaganda publicitária. É singular que sua participação na peça seja justamente vendendo um produto.

 

O totem

A repetição de imagens se dá também na figura do ator. Para reproduzir o efeito da “volta estranha”, o cenário concebido por Elsa Romero e Ianara Elisa utiliza totens de PVC que estampam imagens de Pedro Henrique Müller. Todas as marcações executadas pelo ator no primeiro ato são duplicadas pelos totens, como carimbos que reprisam o que foi visto.

É relevante atentar para o fato de que, no dia a dia, totens são empregados com fins comerciais. Ao entrarmos numa loja, não é raro nos depararmos com um material de proporção humana estampando a imagem de uma personalidade famosa segurando um produto qualquer. A figura é imbuída de uma certa identidade que agrega valor a uma marca e, neste quesito, não se pode precisar qual dos dois é o protagonista: o sujeito ou o produto. Numa fala da peça, uma das vozes diz: “O seu rosto está chamando muita atenção, e é pra chamar atenção para o produto, que está aqui na frente”.

A multiplicação da figura de Müller suscita uma ideia de multidão, conceito normalmente associado ao universo do figurante pois são raras as vezes em que o vemos sozinho. Se assim estivesse, ganharia destaque. Frequentemente figurantes são constituídos enquanto um bloco, uma massa sem identidade. Ao fim do espetáculo, o palco está lotado por uma pequena população de totens de Müller e, neste momento, o ator perde-se em meio a ela, objetificando-se.

Foto: Nan Giard.
Foto: Nan Giard.

 

A definição e o borrão

O espetáculo promove um deslocamento cênico-dramatúrgico em direção à névoa. Neste percurso, o figurante adentra um ambiente de baixa visibilidade. Não procuramos resolver o problema do figurante, mas usufruímos de sua figura para discutir as relações entre imagem e identidade no mundo contemporâneo. O figurante não é algo a ser solucionado. Longe disso, ele deve ser incorporado. É necessário adentrar a névoa para enxergar nossa própria invisibilidade.

Partindo deste princípio, convidamos a companhia Teatro Inominável para criar a cena final de O Figurante, como se este procedimento nos transformasse em figurantes da nossa própria peça. Abrir mão do desfecho da obra, deixando que outros a concluam, é uma maneira de olhar para dentro de nós mesmos e expor aquilo que existe em nosso interior.

Faltando uma semana para a estreia, Andrêas Gatto, Diogo Liberano, Márcio Machado e Thaís Barros assistiram ao ensaio geral da peça e tiveram três dias para propor uma cena final que, em aproximação ou distanciamento da nossa forma de fazer teatro (isso não importa), denota uma visão exterior acerca do trabalho que realizamos, ajudando-nos a atravessar o nevoeiro.

 

Conclusão

Admito que certos conceitos (“real”, “imagem”, “figura”, “teatralidade”…) são bem mais complexos do que o uso que fiz deles aqui. O meio pelo qual escolhi abordá-los intenta um tratamento mais direto dos termos, mais desburocratizado, uma vez que este texto possui o caráter de relato.

Em suma, posso afirmar que em tempos de debates conturbados em redes sociais, onde todos emitem opiniões numa tentativa de protagonizar suas próprias vidas, inspirar-se na imagem do figurante é um ato político. Isto não significa uma anulação, mas uma forma de perceber o outro.

O figurante é a multidão – são os outros e nós. Durante o processo de criação desta peça, investimos na criação compartilhada. Talvez por isso, como afirmou Daniele Avila Small na crítica que escreveu para o espetáculo, “em ‘O Figurante’, dramaturgia, encenação e atuação estão imbricadas como uma coisa só, uma instância autoral que trabalha em conjunto”. Sempre acreditei no teatro como resultado estético de uma reunião de determinadas pessoas criando e refletindo juntas num mesmo tempo e espaço. Com O Figurante, penso termos alcançado este objetivo.

 

Referências bibliográficas

CANDEIAS, Maria Lúcia Levy. A fragmentação da personagem. São Paulo: Perspectiva, 2012.

HOFSTADTER, Douglas. Gödel, Escher, Bach: um entrelaçamento de gênios brilhantes. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987.

MONTEIRO, Rodrigo. Visual. Rio de Janeiro, 01 out. 2012. Disponível em < http://teatrorj.blogspot.com/2012/10/shuffle-rj.html> Acesso em: jul. 2016.

RIBEIRO, Luiz Antonio. O Figurante. Rio de Janeiro: não publicado, 2016.

SMALL, Daniele Avila. Nós, figurantes. Rio de Janeiro: não publicado, 2016.

Leandro Romano é diretor e produtor teatral, formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO. É fundador e diretor artístico da companhia carioca Teatro Voador Não Identificado (www.teatrovoadornaoidentificado.com).

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