A pulsão rapsódica de Octavio Camargo

Crítica do projeto Ilíadahomero

31 de agosto de 2015 Críticas

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: O projeto Ilíadahomero, criado por Octavio Camargo, tem por objetivo a apresentação integral dos 24 cantos da Ilíada, de Homero, na tradução de Manuel Odorico Mendes, na Grécia, em agosto de 2016. O presente texto propõe uma análise panorâmica da encenação dos dez cantos apresentados no Festival de Curitiba de 2015.

Palavras-chave: Ilíada, Homero, Odorico Mendes, rapsódia

Abstract: The project Ilíadahomero, conceived by Octavio Camargo, has as its main goal the fully presentation of the 24 chants of Homer´s Iliad, from the Brazilian translation by Manuel Odorico Mendes, in Greece, August 2016. This text proposes a panoramic analysis of the ten chants presented in the Festival of Curitiba in 2015.

Keywords: Iliad, Homer, Odorico Mendes, rhapsody

 

O modo como o ensaio se apropria dos conceitos seria comparável ao comportamento de alguém que, em terra estrangeira, é obrigado a falar a língua do país, em vez de ficar balbuciando a partir das regras que se aprendem na escola. Essa pessoa vai ler sem dicionário. Quando tiver visto a mesma palavra trinta vezes, em contextos sempre diferentes, estará mais segura de seu sentido do que se tivesse consultado o verbete com a lista de significados, geralmente estreita demais para dar conta das alterações de sentido em cada contexto e vaga demais em relação às nuances inalteráveis que o contexto funda em cada caso.

Theodor Adorno, “O ensaio como forma”

 

O nascimento da crítica em sentido moderno, que remonta ao final do século XVIII, pode ser lido como uma rebelião contra a pretensão das poéticas neoclássicas de estabelecerem critérios a-históricos para o julgamento das obras. No lugar de regras a priori para a produção e a avaliação das criações artísticas, os pais da crítica (e aqui me refiro especialmente a Novalis e aos irmãos Schlegel) postularam que cada obra precisa ser compreendida em seus próprios termos, com base em uma análise imanente que não sucumba à tentação dogmática de simplesmente emitir juízos sobre seu (bom ou mau) acabamento, mas sim que assuma a responsabilidade de amplificar o seu alcance. De juiz pretensamente imparcial do trabalho dos outros, o crítico é convertido em coautor das obras que se propõe a abordar. Sua tarefa, análoga à do artista, é a de propor novos arranjos dos elementos presentes em uma obra, tornando visíveis camadas de sentido que de outro modo teriam permanecido condenadas à inexistência.

A potência desses novos arranjos é em larga medida determinada pela situação histórica do próprio critico. Em qualquer trabalho de crítica da crítica, não se trata de averiguar se o crítico descobre a verdade oculta e imutável da obra – como nos mostrou Iser em sua genial análise da novela The figure in the carpet, de Henry James, tais verdades não existem! (ISER, 1996, p. 23-48) –, mas sim de investigar até que ponto a nova leitura proposta por ele permite entrever na obra originária possíveis caminhos para o enfrentamento das questões do presente. Na bela formulação de Roland Barthes, “a crítica não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou à verdade do ‘outro’, ela é construção da inteligência do nosso tempo” (BARTHES, 2013, p. 163).

Se, por um lado, essa aproximação entre crítica e criação redefine o atual papel social do crítico, que deixa de ser um guia para o consumidor de cultura e se torna um parceiro do artista na lida com a precariedade de uma linguagem que não se contenta em repetir quaisquer padrões canônicos, por outro ela torna visível o quanto também os artistas, e especialmente os diretores de teatro, precisam criticar as obras que se propõem a encenar para realizar o seu próprio trabalho. Se todo crítico tem um quê de criador, todo criador tem um quê de crítico.

Essa afirmação, enquanto permanece apenas teórica, não passa de uma generalização problemática – como, aliás, qualquer generalização. Mas, no caso específico do teatro, e no caso ainda mais específico de encenações contemporâneas de textos clássicos, ela pode ser um fio condutor privilegiado para o trabalho da crítica. Diante de uma nova montagem de um clássico, sou perseguido obsessivamente pelas seguintes questões: até que ponto esse trabalho diz algo novo sobre o original do qual parte? Até que ponto vai além da mera transposição do enredo no qual se inspira? Até que ponto torna visíveis outras camadas de sentido da obra originária que, sem a mediação dessa montagem, eu jamais teria sido capaz de enxergar? Até que ponto se relaciona com as questões mais prementes do presente? Em suma: até que ponto essa peça de teatro é um ensaio sobre a obra original, mais do que a tentativa de reproduzi-la… acriticamente?

No fundo de todas essas questões, pulsa a provocativa formulação de Deleuze em seu ensaio sobre o teatro de Carmelo Bene:

A respeito de sua peça Romeu e Julieta, Carmelo Bene diz: “É um ensaio crítico sobre Shakespeare”. Mas o fato é que CB não escreve sobre Shakespeare: o ensaio crítico é uma peça de teatro. Como conceber essa relação entre o teatro e sua crítica, entre a peça originária e a peça derivada? (DELEUZE, 2010, p. 27)

 

Uma empreitada homérica

A proposta do diretor curitibano Octavio Camargo é trazer Homero de volta ao repertório teatral, de modo que sua poesia se torne novamente familiar, próxima, habitual, popular, e não mais apenas clássica, distante, um tanto quanto hierática ou erudita. Para isso, ainda em 1999, concebeu uma empreitada literalmente homérica: montar na íntegra os 24 cantos da Ilíada, de Homero, com 24 atores, cada qual ficando responsável por um canto. Tendo em vista o seu apreço pela materialidade altamente musical da poesia homérica, o diretor tomou a decisão de utilizar em sua encenação a tradução de Manuel Odorico Mendes (1799-1864), considerado por ninguém menos que Haroldo de Campos “o patriarca da tradução criativa – da ‘transcriação’ – no Brasil” (CAMPOS in HOMERO, 1992, p. 11).

Dezesseis anos depois do nascimento do projeto Ilíadahomero, no último Festival de Curitiba o diretor apresentou os cantos que já conseguiu levantar, dez no total[1]. A ideia é concluir a montagem dos 24 cantos a tempo de apresentá-los em Atenas, na Grécia, simultaneamente aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, o que, por si só, já exprime ironicamente uma posição política. Tendo em vista que a obra como um todo ainda não está completa, as apresentações ao longo do Festival de Curitiba foram batizadas pelo próprio diretor como “em processo”.

Para mim, que havia fracassado na tentativa de ler a tradução de Odorico Mendes da Ilíada – em comparação com a (aparente) dificuldade do texto de Odorico, Trajano Vieira e o próprio Haroldo de Campos parecem escrever num português de novela… –, e que por isso tinha sérias dúvidas quanto à possibilidade de trazê-la à cena, foi irresistível a tentação de ir assistir a uma empresa que, de antemão, me parecia uma temeridade comparável à de heróis gregos como Ícaro ou Níobe. E, no entanto, na sala mofada do Memorial de Curitiba, na qual vi os dez cantos apresentados, tive uma das experiências teatrais mais intensas da minha vida.

Mesmo sabendo que é sempre muito difícil traduzir em palavras o que nos arrebata em uma obra de arte, ou em uma pessoa que amamos, meu propósito é tentar entender algumas das razões desse arrebatamento. Como já terá ficado claro ao leitor, minha estratégia será a de mostrar por que a série de espetáculos a que assisti materializa cenicamente um dos mais interessantes ensaios críticos sobre Homero a que já tive acesso – e talvez mesmo sobre poesia em um sentido mais amplo. Um ensaio crítico que, como os de Carmelo Bene sobre Shakespeare, é uma peça de teatro. Como então conceber essa relação entre o teatro e sua crítica, entre a peça originária e a peça derivada?

 

A questão da adaptação: por um outro ensaísmo teatral

Definitio negatio est”, disse algum medieval de cujo nome já não me recordo. Se toda definição implica a tarefa de delimitar a natureza de algo a partir daquilo que esse algo não é, a primeira coisa que chama a atenção na “adaptação” de Octavio Camargo é o fato de ele (1) não ter cortado nenhuma linha do original; (2) não ter inserido nenhum comentário metalinguístico em sua encenação; (3) não ter abandonado a primazia da palavra de Homero, isto é, não ter cedido à tentação fetichista de produzir imagens autônomas com relação ao texto (à moda das artes plásticas, do vídeo ou da dança); e, finalmente, (4) não ter pretendido simplificar a linguagem do original, não ter recuado diante da tarefa hercúlea de nos restituir com radicalidade o tecido complexo da poesia de Homero.

Essas opções tornam visível a singularidade da Ilíada de Octavio Camargo, sobretudo quando sua encenação é contrastada com uma série de adaptações recentes de textos clássicos.

No Brasil, ao menos desde a década de 1990, ocorreu um boom de montagens desconstrutivistas de clássicos da dramaturgia ou mesmo da literatura universal. Nessas montagens – e aqui tomo como “exemplos exemplares” os seminais Ensaio.Hamlet e Gaivota: tema para um conto curto, ambos dirigidos por Enrique Diaz –, o texto originário era o ponto de partida (1) para a montagem de fragmentos seletos das obras-base, sem qualquer compromisso com a sua totalidade; (2) para inúmeros jogos metalinguísticos dos atores, que não se cansavam de refletir sobre a dificuldade de encenar textos tão distantes no tempo, de denunciar a ilusão teatral e de propor possíveis interpretações contemporâneas, mais próximas do mundo dos espectadores, das ideias trazidas à cena; (3) para a produção de verdadeiras performances, ou mesmo de instalações, na fronteira com as artes visuais e dotadas de uma potência expressiva largamente independente das sugestões contidas no texto-base; e, finalmente, (4) para uma atualização da linguagem dos clássicos, no sentido de torná-la mais coloquial e imediatamente acessível.

Em todas essas opções feitas pela Companhia dos Atores e posteriormente por diversos outros grupos que a macaquearam, era possível entrever todo um pensamento cênico que, alimentado por uma pulsante inquietude formal, queria tornar o teatro mais vivo, mais físico, mais surpreendente, mais contemporâneo. O inimigo declarado era o textocentrismo do drama convencional. As duas montagens a que me refiro atingiram um resultado tão potente que, durante muito tempo, tornaram-se elas próprias canônicas. Se, por um lado, foram um exemplo luminoso de como uma peça de teatro pode ser um ensaio sobre Shakespeare – caso de Ensaio.Hamlet, que traz essa proposta embutida no próprio título – ou um ensaio sobre Tchekhov – caso de Gaivota: tema para um conto curto, cujo subtítulo ostenta o abandono da ideia moderna de totalidade em nome de uma tomada de partido que se poderia dizer pós-moderna ou pós-dramática –, por outro lado essas montagens geraram uma “nova onda de ensaísmo teatral” cujos frutos nem sempre conseguiram preservar o seu sabor. Na esteira dos criadores a que me refiro, assistiu-se a uma enxurrada de encenações puramente estetizantes, em que o prazer narcísico dos atores, o fetiche pela metalinguagem e pela construção de imagens e frases de efeito, o gosto excessivo pela ironia como insígnia social de inteligência (possivelmente tirado das sitcoms americanas), e o uso de projeções e objetos engraçadinhos tendiam a calar a potência ética e política do teatro.

Pensando dialeticamente, é indiscutível que essa “nova onda” possibilitou invenções cênicas e descobertas formais muito fecundas, além de não raro instaurar uma cumplicidade entre palco e plateia que o drama mais tradicional havia virtualmente perdido. No entanto, é igualmente forçoso reconhecer que o abandono de uma exploração mais consistente do alcance poético, político e ideológico dos textos originários muitas vezes redundou em infantilismo. A ironia, a volubilidade e a avidez pela imagem em detrimento da palavra, características de um certo culto à adolescência, tenderam a reputar como “chata” ou ultrapassada qualquer tentativa de construir um ensaísmo teatral mais maduro, mais disposto a encarar de frente a complexidade dos clássicos, sem apelar para atualizações simplificadoras.

Nesse contexto, tornava-se urgente a invenção de um outro ensaísmo teatral. Um ensaísmo que, ouvindo o conselho de Rilke ao jovem poeta, fosse capaz de escolher o caminho mais difícil, o caminho da escuta do texto, caminho que não implica necessariamente o abandono de uma cena visualmente expressiva. Um ensaísmo que, ouvindo Walter Benjamin, reconhecesse que “a distância histórica amplifica o poder das obras” e que, por isso, desconfiaria das atualizações redutoras. Um ensaísmo, em suma, que, ouvindo Nelson Rodrigues, levasse a sério o célebre “Jovens, envelheçam!”.

Esse outro ensaísmo é o praticado por Octavio Camargo em sua encenação da Ilíada. Se já discutimos o que ele não é, cumpre agora descrever o que ele é.

 

No princípio, era o Verbo

Deixar a palavra de Homero soar, apostar que sua música e suas imagens continuam “audiovisíveis” para espectadores de outro tempo e outro lugar, acreditar na potência encantatória e psicagógica da poesia, na força pedagógica da oralidade: esses foram os princípios que tornaram possível a encarnação da Ilíada em Curitiba.

Como suporte para a palavra de Homero, a direção optou por uma cena minimalista. Ainda que com variações nos nove cantos a que assisti, os atores movimentavam-se sutilmente sobre o palco vazio, apenas o suficiente para que seus mínimos gestos e movimentos corporais tornassem eloquentes as variações rítmicas de uma poesia ciosamente recitada. Para além da admiração imediata com a mnemotécnica dos atores, o cuidado com a elocução, especialmente notável nos casos de Lourinelson Vladmir (canto 3) e Patricia Reis Braga (canto 22), prova aos arautos de um certo teatro contemporâneo que o coloquialismo naturalista não é o destino inexorável da linguagem teatral.

Quanto aos figurinos, eram todos negros e discretos sob fundo preto, sem datação cronológica explícita, e convertiam as partes expostas do corpo dos atores – cabeça, boca e mãos (em alguns casos, também os braços) – em fragmentos escultóricos de memória ancestral.

Quanto à música, só a das palavras e dos silêncios, nada de temas incidentais sublinhando certos sentidos e tentando manipular afetivamente os espectadores, entregues a uma confortável (e rara!) liberdade.

Coroando o apuro formal da cena, a luz de Beto Bruel não apenas servia à produção de quadros vívidos de cores e intensidades variadas, mas sobretudo marcava rigorosamente as transições entre narração e diálogo no texto de Homero, deixando sempre claro quem falava: o narrador ou alguma das centenas de personagens que tomam a palavra na Ilíada. (Apenas no canto 24, por exemplo, apresentado por Andressa Medeiros, há 119 mudanças na posição do elocutor e, consequentemente, 119 mudanças de luz). A luz aparece, assim, como elemento cênico articulador de todos os demais, promovendo um casamento feliz entre a sensação e o sentido.

Se, como demonstrou Eric Auerbach em seu célebre ensaio sobre Homero (AUERBACH, 1996, p. 3), sua poesia se caracteriza pela pulsão apolínea de tornar tudo visível, não deixando nada na sombra, marcando ciosamente os limites e as diferenças entre as coisas, os homens e os deuses, o projeto Ilíadahomero como um todo é profundamente homérico ao propiciar ao espectador a possibilidade de ver com os ouvidos, isto é, de se deixar atravessar pelo fluxo musical de uma linguagem a princípio difícil de seguir sem as referências cênicas e dramáticas necessárias para manter aceso o desejo de seguir ouvindo – um desejo que, não custa repetir, eu não fui capaz de manter enquanto apenas tentava ler a tradução de Odorico Mendes da Ilíada.

O fato de que Octavio Camargo não tenha optado por uma tradução mais “fácil” da Ilíada comprova a radicalidade de seu projeto: o entendimento, no teatro, tem antes a ver com uma escuta que respeita o tempo necessário à digestão do que é ouvido, em toda a sua estranheza, do que com a decodificação imediata que reduz o estranho ao familiar e, portanto, não promove qualquer transformação no ouvinte. O fato de se propor a montar um espetáculo de 24 horas de duração deixa claro o quanto a transmissão das experiências verdadeiramente significativas, e mesmo úteis para nossa vida prática – “o passado é nossa bússola”, sintetizou o diretor – depende da possibilidade de convivermos com as obras. Só da convivência pode nascer o amor, que não é um dado natural, imediato. O amor, como bem sintetizou Alain Badiou, “tem menos a ver com o acaso do encontro do que com o trabalho de fazê-lo perdurar” (BADIOU, 2009, p. 41). Um trabalho que depende, como o provam os 16 anos de gestação do projeto Ilíadahomero, da possibilidade de reaprendermos uma capacidade pouco valorizada pelos homens modernos: a capacidade de ruminar.

 

A pulsão rapsódica[2] de Octavio Camargo

Apenas com base nas decisões formais tomadas pela direção, seja na disposição dos elementos cênicos, na opção pela tradução de Odorico ou na tarefa de nos restituir na íntegra a totalidade do poema de Homero, torna-se claro que, em seu ensaio sobre Homero, Octavio Camargo demonstra um raro respeito pela inteligência de seus espectadores. Na contracorrente de diretores que se preocupam o tempo todo em fazer concessões que simplifiquem ou atualizem a linguagem dos clássicos e em criar efeitos espetaculosos para satisfazer um público pensado como “cliente” – por trás dessa aparente generosidade, encontra-se a perniciosa pressuposição de que o público é estúpido, a qual acaba servindo justamente para fomentar essa estupidez, constituindo um círculo vicioso que tem vitimado boa parte da produção atual –, o encenador curitibano deixa claro que a tarefa do artista é criar uma relação com seu material que o faça aparecer sob nova luz, sem se deixar orientar por qualquer consideração prévia à sua sempre imponderável recepção. No caso do projeto Ilíadahomero, essa “nova luz” foi literal: por intermédio das marcações precisas de Beto Bruel, tornou-se fisicamente claro para mim o quanto Homero é, essencialmente, um poeta dramático. (Ou melhor: o quanto sua obra contém em si o germe do futuro, na medida em que é toda feita da mistura dos gêneros épico, lírico e dramático, antecipando Brecht e mesmo os chamados “pós-dramáticos”). E o quanto a convivência com sua poesia depende da transmissão oral. Assim, o teatro é valorizado como lugar privilegiado para a eternização da poesia e, simultaneamente, eterniza-se ele próprio contra os catastrofistas que insistem em vê-lo como “uma invenção sem futuro”.

Ocorre que, na série de apresentações dos dez cantos em Curitiba, o próprio diretor valeu-se do fato de se tratar de uma “mostra do processo” para, antes da apresentação de cada um dos cantos, subir ao palco para ele mesmo contar, em uma linguagem coloquial e prenhe de humor, o enredo de cada um dos cantos que seriam apresentados na sequência. Valendo-se das prerrogativas de uma abordagem informal da matéria clássica, Octavio Camargo não se restringia a apresentar o enredo dos cantos. Esmerava-se também em explicar as origens do projeto Ilíadahomero e os princípios ideológicos que nortearam a sua gênese.

Octavio Camargo. Foto: Divulgação.
Octavio Camargo. Foto: Divulgação.

Dentre as muitas informações com que brindou o público nesses seus prólogos, duas me parecem dignas de destaque. A primeira diz respeito a uma possível analogia entre o português algo castiço de Odorico e o grego de Homero. Como frisou o diretor, para as plateias da época clássica, no século V a.C., o grego de Homero já era uma língua estranha, antiga, distante da linguagem cotidiana. Nesse sentido, a distância histórica entre o grego de Homero e o grego da época clássica seria análoga à nossa distância histórica com relação à língua de Odorico. Assim, a opção pela tradução com sabor clássico de Odorico, e não por uma mais moderna, teria a vantagem adicional, para além de sua força poética intrínseca, de nos colocar em uma atmosfera semelhante à do público habitual de Homero à época dos grandes concursos de homeristas. As multidões que acorriam a esses concursos, ao contrário de nós, não se sentiam constrangidas pela dificuldade linguística dos poemas. Isso se devia ao fato de que, desde a infância, conviviam com a linguagem de seu poeta maior. O hábito e a familiaridade cultural com um poeta já então “clássico” e um tanto “erudito” tornavam-no popular, a despeito de sua complexidade. Dessa constatação, é possível tirar uma lição valiosa: não há obra intrinsecamente difícil, assim como não há língua que não se possa aprender. Octavio Camargo mencionou inúmeras vezes as crianças chinesas, que dominam com perfeição uma língua para nós quase impossível. Tudo é uma questão de convivência. E de acesso. Sob essa ótica, o problema da educação para e pela poesia é redimensionado: em vez de perdermos tempo pensando em estratégias facilitadoras, mister é formarmos um público habituado ao fato de que, diante das verdadeiras obras de arte, precisamos proceder como quem aprende uma língua estrangeira sem dicionário. Quanto mais vezes somos expostos a essa língua em seus próprios termos, mais seremos capazes de compreendê-la e, assim, frui-la. No fundo, portanto, a disputa entre o erudito e o popular, ou entre o teatro dito experimental e o teatro dito comercial, não tem como ser decidida em termos objetivos (qual teatro seria essencialmente melhor) nem em termos subjetivos (o que a maioria das pessoas gosta). Precisa ser decidida em termos políticos. Quanto mais o Estado garantir o acesso do público a obras formalmente mais exigentes, menos elas serão experimentadas subjetivamente como impenetráveis. E assim, em algum momento, a distinção entre o erudito e o popular deixará de fazer sentido. Só por esse caminho indireto a ideia de “popularização dos clássicos” é louvável. Os caminhos diretos são, nesse caso, um rebaixamento tanto dos próprios clássicos quanto de seu possível público.

A segunda informação está intimamente associada à primeira. Diz respeito ao reconhecimento, por parte dos próprios gregos da época clássica, de que o hábito apenas não seria o suficiente. Esse reconhecimento está ligado às funções do rapsodo, protagonista dos concursos de homeristas que levavam multidões aos teatros, performers no sentido mais contemporâneo do termo, verdadeiros pop-stars. Íon, imortalizado no diálogo homônimo de Platão diversas vezes citado por Octavio Camargo em seus prólogos, foi um deles. Na cultura grega, o rapsodo era o intérprete dos poemas épicos, que conhecia de cor. Protoator que fazia todos os papéis, o rapsodo servia também de “explicador” das passagens mais obscuras dos poemas a um público que já se encontrava distante no tempo de sua fonte original, sendo por isso aparentado aos sofistas e, como eles, alvo dos ataques de Platão. No diálogo Íon, o filósofo procura demonstrar que os rapsodos, justamente porque falavam por “possessão divina”, eram capazes de produzir discursos de grande beleza, mas não possuiriam verdadeiros conhecimentos sobre aquilo de que falavam – essa acusação é bastante grave se levamos em conta que, como intérpretes dos poemas épicos e sobretudo de Homero, o “pedagogo da Grécia”, eles eram em larga medida responsáveis pela educação do povo, posto pretendido pela nouvelle vague dos recém-surgidos filósofos.

Independentemente do contexto da disputa entre Platão, os sofistas e os poetas miméticos, o fato é que, na Grécia do período clássico, quando a língua de Homero já soava distante, a “interpretação” de Homero resguardava dois sentidos complementares: era a interpretação no sentido teatral e musical do termo, pensada como atualização performática de obras preexistentes; mas era também a interpretação no sentido de explicação, que pressupunha a consciência, por parte do artista, de que o nível de consciência de seu público exigia, para além do espetáculo cênico, alguma forma de mediação discursiva que tornasse mais potente a palavra dos poetas.

Curiosamente, por mais que eu tenha insistido ao longo deste ensaio na homenagem feita por Octavio Camargo à inteligência de seu público ao recusar, em sua encenação dos dez cantos, quaisquer procedimentos redutores da complexidade de Homero, obrigando o público a conviver com a estranheza do clássico nos seus próprios termos e construindo um dispositivo cênico tão apolíneo quanto a própria poesia homérica, é digno de nota que, ao menos nas apresentações realizadas no festival de Curitiba, o próprio diretor tenha sentido a necessidade de uma mediação discursiva prévia aos cantos. Se tomarmos os rapsodos clássicos como paradigma, a estratégia de Octavio Camargo foi a de apostar em uma divisão do trabalho rapsódico: os atores ficaram responsáveis pela interpretação como apresentação performática e o próprio diretor ficou responsável pela interpretação como mediação discursiva. Evidentemente, o contraste dos estilos salta à vista, já que o rigor que dirige as atuações destoa da simpática informalidade do próprio diretor.

Como se trata de um trabalho ainda em processo, eu arriscaria duas sugestões opostas: ou bem o diretor permanece fiel à sua pulsão rapsódica no sentido de construir para si próprio um dispositivo cênico que enquadre com maior rigor os seus prólogos; ou bem, cedendo à mesma pulsão rapsódica e mimetizando talvez o duplo trabalho dos antigos rapsodos, transfere para os próprios atores a responsabilidade pela mediação discursiva dos aspectos mais obscuros de seus respectivos cantos.

Em todo caso, uma coisa parece certa: em encenações contemporâneas de Homero, investir numa reatualização da figura do rapsodo que contemple ambos os aspectos de sua função original é algo de sumamente desejável. Tendo em vista a elogiável radicalidade na opção pela tradução de Odorico Mendes, eu diria que as duas metades complementares desse trabalho apontam na direção de uma crítica que não se esgote apenas na imanência das opções cênicas, mas que, sem medo de uma discursividade mais solta e próxima da linguagem do presente, assuma que, em se tratando dos clássicos, a autonomia da obra de arte não é ferida pela incorporação explícita da crítica ao texto originário. Uma incorporação que, não podendo se confundir com as facilitações metalinguísticas contemporâneas, ainda está por ser inventada. Se algum diretor brasileiro possui as ferramentas necessárias para essa reinvenção madura da figura do rapsodo, esse diretor é Octavio Camargo.

 

Referências bibliográficas

ADORNO, T. “O ensaio como forma”. In: Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, ed. 34, 2003.

AUERBACH, E. “A cicatriz de Ulisses”. In: Mímesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2001.

BADIOU, A. Éloge de l´amour. Paris: Flammarion, 2009.

BARTHES, R. “O que é a crítica”. In: Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2013.

BENJAMIN, W. “As afinidades eletivas de Goethe”. In: Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. Tradução de Mônica Krausz Bornebusch, Irene Aron e Sidney Camargo. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2009.

DELEUZE, G. “Um manifesto de menos”. In: Sobre o teatro. Tradução de Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

HOMERO. Ilíada. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Cotia, SP: Ateliê editorial; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.

HOMERO. Odisseia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Edusp; Ars Poetica, 1992.

ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético (vol. 1). Tradução de Johanes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.

NANCY, J-L. “Le partage des voix”. In: Ion. Traduction par Jean-François Pradeau. Paris: Ellipses, 2001.

NIETZSCHE, F. “Zur Genealogie der Moral”. In: KSA, Band 15. München: Deutscher Taschenbuch Verlag; Berlin/New York: de Gruyter, 1993.

PLATÃO. Íon. Tradução de Claudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

SARRAZAC, J-P (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosacnaify, 2012.

 

Patrick Pessoa: Professor do Departamento de Filosofia da UFF, crítico e dramaturgo.

 

Notas: 

[1] Os dez cantos apresentados em Curitiba foram os seguintes: Canto 1, por Claudete Pereira Jorge; Canto 3, por Lourinelson Vladmir; Canto 7, por Helena Portela; Canto 8, por Célia Ribeiro; Canto 13, por Kátia Horn; Canto 14, por Eliane Campelli; Canto 15, por Regina Bastos; Canto 16, por Richard Rebello; Canto 22, por Patricia Reis Braga; Canto 24, por Andressa Medeiros. Dada a relativa autonomia de cada apresentação, seria muito interessante fazer análises mais pormenorizadas de cada uma, realçando suas semelhanças e diferenças, mas esse trabalho foge ao escopo deste ensaio.

[2] O título deste ensaio dialoga com o conceito de rapsódia de Jean-Pierre Sarrazac, cujas características são “ao mesmo tempo a recusa do belo animal aristotélico, caleidoscópio dos modos dramático, épico, lírico, inversão constante do alto e do baixo, do trágico e do cômico, colagem de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita em montagem dinâmica, investida de uma voz narradora e questionadora, desdobramento de uma subjetividade alternadamente dramática e épica (ou visionária)” (SARRAZAC, 2012, p. 152). Ocorre que, a despeito dessa inescapável referência ao maior teórico do teatro ainda em atividade, procurei enfatizar mais, segundo fecunda indicação de Jean-Luc Nancy, a ambiguidade contida na figura do “rapsodo como intérprete”: a um só tempo ator e explicador das obras cujo caráter híbrido não se cansa de sublinhar.

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