Uma visita a Sarcey

Tradução de Helena Mello do texto publicado no livro Um século de crítica dramática

10 de março de 2009 Traduções

Uma visita a Sarcey é uma tradução de Helena Mello do livro Um século de crítica dramática, organizado por Chantal Meyer-Plantureux. Francisque Sarcey (1827-1899) é considerado a figura mais célebre da crítica francesa que nasce no fim do século XIX. Durante 32 anos, o “tio”, como era chamado, teve suas críticas publicadas todas as segundas-feiras até maio de 1899, ano de sua morte.

Aconselhado por alguns amigos, fui fazer uma visita a Francisque Sarcey. Eu devia agradecer o comentário que ele havia consagrado ao Mauvais Berger e também lhe levar os votos de ano novo. No momento em que eu entrei, o velho crítico saía da mesa. Ele estava sentado, ou melhor, esprimido em uma poltrona, rosto muito vermelho e congestionado, o olhar sonolento, a boca caída. Porém, ao me ver, apesar de sua prostração, ele exclamou no  tom de falsa e trivial bonomia que lhe é particular:

– Ah! Ah! …. É você? …Então, eu fiz um artigo para você, meu rapaz!

– Eu não esperava menos de sua má fé – repliquei saudando-o. – E eu vim lhe agradecer por ter usado toda a correção. Isto me honra.

– Este maldito Mirbeau! …Ele é, no entanto, um bom rapaz!

Ele quis se levantar para me oferecer uma cadeira. Mas, inflado pela digestão, ele não pode. As grossas coxas curtas, sobre as quais pesava todo o peso de uma barriga enorme cheia, impediu o esforço. Eu mesmo peguei uma cadeira, me sentei, desajeitado, diante deste monte de banha.  Minha visita o tinha acordado.

– Você viu o último Gandillot? – Me perguntou ele. – É tão complicado! E se eu não entendi, imagine! Ah! Que homem. Só ele mesmo!…Eis um que é surpreendente! Não, sério. Meu pobre rapaz, sua genialidade me confunde. Depois de Molière, não tinha idéia de um gênio semelhante. Maldito Gandillot.

– O Senhor Gandillot – respondi – é um homem encantador de fato… e eu lastimo de todo meu coração que ele tenha merecido receber vossa proteção. Ela não o levou muito longe. De resto, não se trata de Gandillot, sobre quem durante toda a sua vida pesará esta desagradável injustiça que o senhor o admirou e amou. Eu vim lhe falar de uma outra coisa.

– Então…diga, meu rapaz…já que eu não posso conceber assim dois homens reunidos para falar de outra coisa que não seja  Gandillot!…

Eu olhava fixamente o pai Sarcey, e de uma voz lenta e melancólica:

– Vejamos! – Disse-lhe. – Você não pensa nunca na morte?…

O velho crítico sobressaltou:

– Deus me livre! Você é engraçado! Não, eu não penso nunca na morte. Aliás, eu não penso nunca em nada….

Ele tentou rir. Mas, sua face estava ligeiramente avermelhada, seus olhos se arregalavam, suas mãos se contorciam violentamente sobre os braços da poltrona e sua voz tremia… Ele balbuciou:

– Por que você quer que eu pense na morte?…Isto não é um assunto de comédia! E depois, você sabe, eu não gosto muito deste tipo de conversa… Eu sou um velho engraçado!

– É exatamente por isso, repeti, que você deve pensar na morte…Chegou a hora!

– Como chegou a hora? …ah, francamente, esta é forte!

Ele se mexia na sua poltrona, procurava melhor se acomodar e dizia:

– Mas, pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus! Esta não é teatro!… A morte! Esta aí uma cena que não deve ser feita!… Os jovens são extraordinários, palavra de honra. Não sabemos onde eles encontram todas estas malditas idéias que eles têm. É inconcebível! Não há mais o senso de comédia hoje em dia.

Era visível que o pai Sarcey procurava cobrir com suas palavras e seus gemidos de uma voz desconhecida que tinha se apoderado dele e lhe tamborilava aos ouvidos coisas lúgubres e semelhantes ao dobre dos sinos.  

– Escute-me – lhe disse eu –…O homem bravo deve sempre olhar de frente seu destino, e preferir a verdade, qual que ela seja, à todas as ilusões….É certo que você pode morrer, que você deve morrer, a qualquer momento… Eu lhe observava, ontem, no teatro… E, eu vi, entenda, perto de você, chegar ao seu lado, em uma sala vizinha a sua, esta pessoa sinistra que se chama apoplexia!… Ela se curvava sobre você, irônica e careteira: algumas vezes, ela lhe acariciava o rosto com suas flores púrpuras; outras vezes, ela cravava suas garras na sua nuca…

– Deus do céu! Deus do céu! – Gemia o pobre homem que não parava de cassar com as suas mãos alguma coisa de invisível e que fazia ruído ao redor dele como uma mosca. – Pelo amor de Deus. A gente não diz coisas como esta para gente honesta.

Eu continuava:

– Seu destino é de morrer, uma noite, inesperadamente, em uma poltrona da platéia! Será, talvez, a suprema ironia! Numa peça de M. Gandillot!… E não apenas você terá o remorso de interromper um espetáculo que você ama… mas, imagine esta coisa trágica… Será necessário lhe retirar, por entre as fileiras de poltronas, de lhe fazer passar pelas portas muito estreitas, pelos corredores cheios no meio do burburinho das “lanterninhas” e da curiosidade macabra dos espectadores!… Será lamentável e horrível!… Veja-só! Você não tinha nunca previsto este desdobramento?

– Pelo amor de Deus! Amor de Deus? Fique quieto! Fale-me das jovens mulheres! Das jovens mulheres em horas felizes! Isto é que é teatro!

– E da apoplexia, além disso, meu pobre Sarcey! Mas, você tem um meio, talvez, de evitar este fim horrível, justiceiro e certo!….

– Qual é? Diga-me, pois, eu não quero morrer assim….

– Abandone o teatro… Recolha-se, esperando o dia final. Os últimos dias que lhe restam de vida. Viva-os em paz e, se você puder na purificação do arrependimento… Ame a natureza, as flores, as manhãs de esperança e os crepúsculos que fazem pensar nas doces e serenas agonias… E você será perdoado, quem sabe? Nós esqueceremos rápido, pois a indulgência é infinita no coração homem – que você foi um ser malvado e vil, que toda a sua vida, você realizou uma tarefa feia e suja… e covarde como a impotência de onde ela sai!… Pois, enfim, recapitulemos: todos os esforços que mereciam ser apoiados, vocês os desencorajou… Você cuspiu ignominiosamente sobre tudo que é belo… De Hugo à Beque, você tentou sujar, com a podridão da sua alma, todas as obras nas quais havia o frisson da vida, a nobreza do pensamento, o poder da criação… Sua bonomia hipócrita? Do fiel e da raiva… Seu bom senso! Merda!

– Merda! – Olhou o bom homem que, apesar de sua perturbação, passou sua língua sobre a boca, com uma lambida de gulodice! – Merda! É verdade! Eu amo isto!

Depois, bruscamente, ele acrescentou:

– Você tem razão. Eu sou um velho canalha! Eu exaltei tudo o que existe de mais baixo no espírito do homem. Eu adorei a podridão e divinizei a estupidez… Tudo o que eu cometi de infâmia,só eu sei!… Mas, o que você quer?… Eu me sinto incapaz de mudar alguma coisa na minha maldita natureza…Tal como eu vivi, tal eu morrerei… Entretanto, eu não quero morrer assim, em uma sala de teatro! Brrr! Você me deu frio no estômago… E eu sinto no meu cérebro um peso! Pelo amor de Deus! Você teve uma infeliz idéia de vir, no dia do ano novo, me falar de semelhante profecia!… Isto não é verdadeiramente generoso!… Ainda mais que eu não posso fazer nada! Vejamos, meu caro rapaz, você deve compreender que críticas são necessárias, considerando que eu sou… Um crítico tal como eu é necessário para fazer melhor sentir pelo contraste, nos corações simples e nas almas ingênuas, o que é a beleza, não de um cachorro!… Ou, se eu abdico quem me substituirá?

– Não faltará quem o faça!.. Veja, M. Émile Faguet!

– É uma figura este Faguet!…

E Francisque, sonhador, refletiu durante alguns minutos, depois, retomou:

– Faguet! Ah, meu Deus!… Ele tem qualidades, é verdade!… Ele é vulgar, incompreensível e de má fé! Ele cisma de me imitar e, pior, ele consegue… Eu não posso dizer que não… Eu não posso dizer que não!

– Então?

– Sim, mas, ainda assim, não é a mesma coisa. Eu não sou uma besta, no fundo! Eu sou um velho malandro! Enquanto que Faguet! Acredite. Minha velha experiência… E preste bem atenção: na critica, meu jovem amigo, existem os fagots e os Faguet!*

Depois, suas pupilas pesaram, sua cabeça rolou sobre o peito, como uma pesada bola, e ele adormeceu repetindo com uma voz lenta e distante:

– Existe Faguet e Faguet!*

* Aqui o autor faz um jogo de palavras com o nome de Émile Faguet, crítico francês, e a palavra fagot que significa feixe de lenha, mas também a pessoa que mente, faz as coisas mal, confusamente.

Le Journal, 2 de janeiro de 1898

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