Críticas
O instante fugidio

O desejo de reter um brevíssimo instante em relação ao qual não se tem (ou quase não se tem) acesso sobressai na dramaturgia de Dentro, concebida pelos integrantes da Pequena Orquestra a partir de argumento de Michel Blois, que acumula as funções de diretor e ator.
Em determinada passagem da encenação em cartaz no Teatro Ipanema, um dos personagens destaca a sensação de vácuo no momento em que a água do chuveiro é desligada. Em outra, alguém discorre brevemente sobre como seria lembrar da própria morte, uma “personagem”, aliás, importante em Dentro. O medo de morrer decorre das ameaças advindas da guerra que explode fora do apartamento (onde os personagens se encontram confinados), mas não apenas. Também se impõe fora da lógica da realidade, a exemplo daquele que teme a própria morte, noticiada no jornal, apesar de permanecer vivo.
Meios que encarnam a fala

A peça Matamoros, idealizada por Maíra Gerstner e dirigida por Bel Garcia, encena o conto de Hilda Hilst Matamoros (da fantasia), que conta a história de uma menina pelo viés da sua sexualidade em confronto com a porção familiar, a herança dos modos de ser e agir em tudo aquilo que acaba dando um contorno para o vivido. As trajetórias de mãe e filha se entrelaçam por acontecimentos da relação de afeto das duas, ainda na infância, que tenta reposicionar a sexualidade da menina. Mais tarde, ambas se verão na disputa por um mesmo homem. Isso faz com que apareça uma experiência que transita entre o desejo e um florescimento da vida e a inevitável sensação de morte que acompanha o novo quando faz desabar aquilo que parece nos prender. A morte surge como elemento inevitável de todas as promessas daquilo que é vivo. Dá-se uma espécie de encarnação da maternidade e da finitude pelo lado da apreensão da filha, ao mesmo tempo em que sua criação de fantasia propõe um falseamento que renova os significados da relação entre as duas.
Mistérios da fala no corpo

Um modo de fazer o mundo surgir, ou dito de outra maneira, a plasticidade do sensível na linguagem. É possível dizer assim do trabalho de arte da peça Nada. Talvez ainda não apareça neste texto uma escrita capaz de se haver com o prazer melancólico que se pode ter com a imagem-tempo da encenação. Mas uma hipótese possível, ainda que cheia de fraturas, é a de que o mundo mostrado pela conjugação entre a poesia de Manoel de Barros e a poética criada pelos irmãos Fernando e Adriano Guimarães em parceria com a diretora Miwa Yanagizawa, dramatiza o conflito do conhecimento numa dupla tensão entre o sensível e o mundo das imagens que trabalha com o desmonte visual das coisas, com o teor de desestabilização da palavra poética do poeta.
A multiplicidade das sensações

O Centro Cultural Municipal Oduvaldo Vianna Filho, o Castelinho, abrigou, durante o mês de maio, o espetáculo Por que você é pobre?. A montagem, concebida e dirigida por Tania Alice, teve sua dramaturgia processada em colaboração por integrantes do coletivo de performance Heróis do Cotidiano, formado pelos atores André Marinho, Daniele Carvalho, Larissa Siqueira, Luciano Maia, Mariana Simoni, Renata Sampaio, Rodrigo Abreu e Tania Alice. Agregaram-se a eles uma equipe técnica formada por profissionais da fotografia, do vídeo e das artes plásticas. O interesse pela temática surgiu de uma necessidade desse grupo de ir às ruas e de ouvir da sociedade o que caracterizaria, para cada um, o conceito de pobreza em suas diferentes nuances e significações simbólicas. O material resultante desse contato foi transformado em expressão estética, que joga com diversas possibilidades de recepção ao fragmentar a estrutura narrativa em eixos temporais e espaciais que estilhaçam, por completo, a possibilidade do espectador de assistir e contemplar um resultado único, coeso e totalizante.
A primeira vista e três dramaturgias – uma crônica-poética da morte e da vida

A peça A primeira vista de Daniel MacIvor dirigida por Enrique Diaz conta, fragmentariamente, a história de duas mulheres (vividas por Drica Moraes e Mariana Lima) que se conhecem num lugar banal e por meio de um encontro aleatório. Vivem, a partir daí, uma história de amor. Ou seja, no meio da banalidade dos acontecimentos de suas vidas, erige-se um enorme afeto. Esse faz com que se permitam uma experiência homoafetiva, cheia de desencontros e de decepções – apesar de elas desconhecerem, aparentemente, a prática homossexual em suas vivências afetivo-sexuais anteriores.
Depois da primeira noite, a personagem interpretada por Mariana Lima foge antes de sua amiga acordar, e comenta, como narradora, acerca da dificuldade de se ver como bissexual, pois, segundo ela, a bissexualidade exige do indivíduo grande poder de organização, qualidade que ela não dispunha naquele momento.