Críticas
Refinamento estético dos detalhes

Ficção teve sua estreia na cidade do Rio durante o Tempo Festival e está em cartaz no Teatro do Oi Futuro do Flamengo. É uma oportunidade de assistir o trabalho da Cia Hiato de São Paulo, dirigida por Leonardo Moreira, que protagoniza uma pesquisa interessada numa dimensão de jogo e abertura da linguagem cênica que, para além de qualquer didatismo ou programas teóricos, se forma numa esfera de atrito entre o mito, a ficção e os poderes do espetáculo como dinamizadores da realidade. Este investimento constrói trabalhos pautados no distanciamento, ou em tomadas de distância para que se possam ver melhor as coisas, sem destituir completamente momentos de imersão e prazer para o espectador. Seus temas se desenvolvem em olhares oblíquos afetados por anomalias tratadas como potências. Assim acontece em Cachorro morto (2008) que performatiza a história de um portador da Síndrome de Asperger, em Escuro (2009) que problematiza a cegueira e a inadequação da linguagem, ou em O jardim (2011) que trabalha com a característica lacunar da memória.
Geografia da exclusão

O Teatro da Vertigem evidencia a ampliação do conceito de texto por meio da utilização de espaços não-convencionais, a exemplo das apresentações em igreja (Paraíso Perdido), hospital (O Livro de Jó), presídio (Apocalipse 1,11), rio (BR3) e prédio (Kastelo). O público é inevitavelmente influenciado pela carga desses espaços – carga que se converte em texto não-verbal, confirmando que as vias de acesso aos espetáculos não se dão mais tão-somente pelas palavras proferidas pelos atores em cena.
Arte-violência e a pluralidade de contextos

A peça escrita por Pedro Kosovski e dirigida por Marco André Nunes, que esteve em cartaz no teatro arena do Espaço SESC, em Copacabana, Cara de Cavalo, é um grande desafio de pragmática crítica. O termo pragmática é utilizado em linguística para nomear a ciência que identifica os contextos de produção dos discursos, a fim de construir uma interpretação do significado dos termos, percebendo que esse só pode ser decifrado dentro do campo discursivo no qual está inserido. E a peça em questão pretende, sobretudo, colocar lado a lado a discussão sobre arte-violência através de duas linhas referenciais (às vezes, cruzando as mesmas e outras vezes as separando), aludindo à espetacularização da violência cotidiana nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues e adentrando no discurso sobre arte-violência que foi construído por Hélio Oiticica através da figura marginal de Manoel Moreira – conhecido como Cara de Cavalo.
O desejo paradoxal de ter e querer

30 de Abril de 1993:
A tenista Monica Seles, então número um do ranking mundial, foi esfaqueada durante uma partida das quartas-de-final do Torneio de Hamburgo. O autor do atentado, o alemão Günter Parche, foi durante anos obcecado pela tenista alemã Steffi Graf, principal concorrente de Seles. A obsessão de Günter por Graff começou em 1985, quando a viu em um programa de televisão. A partir de então, passou a escrever cartas para a tenista e para sua mãe. Chegou a mandar dinheiro, forrar as paredes de seu quarto com fotos gigantescas da moça e não perdia nenhum de seus jogos. Ela era a criatura de seus sonhos, com olhos de diamantes e cabelos de seda brilhantes, conforme afirmou após o atentado contra Mônica Seles. Ele cometeu o ataque com o objetivo de fazer com que seu objeto de adoração voltasse a figurar no topo do ranking mundial. O plano foi arquitetado quando a tenista foi derrotada por Monica Seles em 1990, durante o German Open.
A mímesis constelatória de um maravilhoso museu em movimento
O maravilhoso museu da caça e da natureza, espetáculo dirigido por Renato Linhares, que esteve em cartaz no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto de 31 de agosto a 23 de setembro deste ano, traz ao tablado uma série reflexiva sobre a mímesis. Esta categoria, felizmente, não é mais igualável ao significado de limitação artística, trazida pela moralização da ideia de cópia-modelo. Pode-se percebê-la, como mostra o espetáculo, de modo constelatório, abrindo-se em imagens que se cruzam e se distanciam, e não apenas por meio da percepção da cópia de um paradigma fixo.
Walter Benjamin diz, em seu ensaio A doutrina das semelhanças, que “os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas.” Daí ele avança: “A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também de moinho de vento e trem.” (BENJAMIN, 1996, 108). Neste sentido, o filósofo nos expõe o quão ampla é a faculdade mimética na criança, sem restringi-la a imitação de pessoas, mas apresenta-nos o potencial de imitação em direção ao sujeito (“comerciante ou professor”) e à máquina (moinho de vento e trem). Em outra passagem, Benjamin mostra, fundamentalmente, o quanto a busca pelo semelhante se aproxima da práxis do astrólogo. Assim como esse interpreta a diversidade das significações dos planetas e as tensões existentes entre eles, num jogo de associações em busca das semelhanças, a criança brinca de ser “comerciante ou professor” e “moinho de vento e trem”. Ela, portanto, modifica o campo circunstancial do referente e pode produzir jogos de semelhanças tanto dentro de um contexto humano quanto maquínico.