Críticas
Janela barroca

“O presente está grávido do futuro; o futuro poderia
ser lido no passado; o distante é expresso pelo próximo.”
(Leibniz, Principes de la Nature e la Grace fondés en raison)
O espaço cênico do Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto, por ocasião da peça 201, argumento e direção de Dulce Penna de Miranda, foi dividido em duas metades por uma parede, criando duas ambientações diferentes para um mesmo apartamento em épocas diferentes. A parede e sua ampla janela, que permite a visibilidade simultânea de ambos os espaços, é o fundamento para uma reflexão sobre a singular potência que há no cotidiano. Cada lado-época está relacionado, sob um regime de atualidade/virtualidade, com o outro. Separados pela janela, um é o lado de fora do outro, estruturando uma univocidade narrativa na qual os locatários de cada lado-época se complementam e constituem uma cadeia causal não linear que se reflete em todos os sentidos do tempo. A exemplo dos mundos compossíveis de Leibniz, o apartamento 201 é construído sob a égide de uma força barroca que dobra o tempo sobre si e redobra o espaço para a construção de uma cena livre da ordem cronológica dos acontecimentos retilíneos. Os mundos possíveis são conjuntos lógicos de conceitos individuais; com o advento da perspectiva, cada percepção formula seu mundo particular. Os mundos compossíveis são todos os desdobramentos que cada acontecimento pode sofrer e a percepção é a janela entre esses mundos, sendo o melhor dos mundos possíveis o que se chama de real.
Por onde começar?

Por onde começar? – um dia perguntou-se Roland Barthes, tentando indicar aos jovens que iniciam uma pesquisa possíveis percursos a serem trilhados. Ao longo do texto ele distribui preciosas dicas para ajudar novatos a não sucumbir às muitas e muitas tentações – quase inevitáveis, nestes casos – quando se quer abraçar o mundo com as mãos. Nos jovens, ambição e descontrole costumam ser desmesurados.
Antes da coisa toda começar não é uma pesquisa de linguagem, embora tenha demandado à Cia. Armazém longos laboratórios de investigação – o que é, de saída, a proposta de não dormir sobre os louros conquistados. Esta nova criação está organizada em torno das possibilidades existenciais abertas à vida de três jovens que se interrogam sobre seus limites. A dramaturgia leva a co-assinatura de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, dupla que já testou suas possibilidades de escritura conjunta em ocasiões anteriores. O que confere ao trabalho – uma estruturação de ações criada em colaboração improvisacional com o elenco – o feitio de coisa de palco; ou seja, um desapego à noção corrente de texto e um investimento rente à cena, um apoio de palavras que, medidas e meditadas, não é simples compilação.
Materialidade artesanal

Há poucas semanas, escrevi sobre a peça Mi vida después, da encenadora argentina Lola Arias, que me fez pensar o quanto é raro ver (no Rio de Janeiro pelo menos, onde vivo e trabalho) trabalhos de artes cênicas que façam referência à História – no caso me referia especificamente a um momento problemático da nossa História, a ditadura. Com isso, não estou defendendo que se deve fazer teatro para falar da História, faço apenas uma especulação. No Rio, fica a impressão de que isso acontece mais nos musicais que muitas vezes contam a história de determinado músico ou de determinado período da música. Mas o formato congelado dos musicais cariocas (é claro que existem exceções) revestem os temas históricos de um glamour tão artificial, que mal se pode reconhecer ali uma história vivida por seres humanos – o que fica visível nos figurinos com jeito de recém-saídos da costureira, na iluminação de efeitos fáceis e nos cenários grandiosos, porém literais e sem potencial de produção de sentidos. A História que se conta é quase sempre de um momento áureo, por assim dizer, ou a biografia romantizada de alguém conhecido. É raro ver alguém tocar nas feridas da História por aqui. Cariocas não gostam de dias nublados.
Incisão na fantasmagoria – perspectiva da ruína familiar

A peça Pterodátilos dirigida por Felipe Hirsch é a encenação do texto do americano Nicky Silver e já havia sido trabalhada pelo diretor e pelo ator Marco Nanini há oitos anos, quando ganhou o prêmio APCA de melhor espetáculo em 2002. Segundo Hirsch, a necessidade de retomar o projeto de Pterodátilos está investida, sobretudo, pela conformação de mercadoria cada vez mais evidente, pela qual a sociedade se constitui. Essa intenção é formalizada com apuro na encenação atual que realiza uma apropriação crítica dos processos de reificação – isso confere seu teor de modernidade e de contemporaneidade. A fábula se desenvolve a partir da desestruturalização de uma família de classe média alta, cujo patriarca é Arthur (Marco Nanini), um empresário presidente de banco, e sua mulher Grace (Mariana Lima), uma dona de casa alcoólatra e, por isso mesmo e inversamente, consumista. Ambos são assolados pelo retorno do filho Todd (Álamo Facó) e pelo eminente casamento da caçula Ema (Marco Nanini) com o namorado Tom (Felipe Abid), transformado em empregada. Surgem tensões de ordem material, o desemprego do pai, a gravidez da filha, a infecção que acomete o filho e a descoberta de ossos no subsolo da casa.
A linguagem do outro

A peça Congresso Internacional do Medo, do grupo Espanca!, abriu o ACTO2, evento que acontece de 20 de outubro a 3 de novembro deste ano em Belo Horizonte. O encontro reúne três grupos de diferentes estados do Brasil: a Companhia Brasileira de Teatro, do Paraná, o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo e o Espanca!, de Minas Gerais, e dá continuidade ao ACTO1 que aconteceu em 2007, com os mesmos grupos, que apresentaram espetáculos de seu repertório – Suíte 1, Hysteria e Por Elise. Neste ano, além de Congresso Internacional do Medo, o evento conta com dois trabalhos da Companhia Brasileira, o espetáculo Vida e o exercício Descartes com lentes, além da apresentação de Hygiene, do Grupo XIX, e das oficinas e encontros com os grupos.