Críticas
Leve tom crítico de uma brincadeira desvairada

Pedro Brício parece mais disposto a brincar do que a fazer uso do tom crítico em Me salve, musical!, mas, apesar disso, distribui, ao longo desse seu novo texto, diversos comentários relacionados a um modo de entender e, por conseguinte, fazer teatro.
Os personagens principais – o casal George Simas e Alma Durán – já evidenciam, de certa maneira, algumas tomadas de posição. Ele é um diretor de musicais que procura copiar o padrão de realização da Broadway, proposta que limita seu alcance artístico. Essa ambição – não exatamente a de copiar, e sim a de atingir o know how dos espetáculos americanos – é externada com frequência por produtores e diretores contemporâneos. Logo no prólogo, George surge em cena lançando uma provocação ao público: diz que o teatro deve ser encarado como uma diversão escapista cujo principal sentido está em propiciar que se esqueça das agruras do dia-a-dia. Alma, em contrapartida, é uma atriz com vocação para a tragédia, dona de personalidade passional, bem menos disposta a fazer concessões.
Equação entre intenção e resultado formal

O espetáculo As três velhas remete ao meu viés crítico pelo lado mais inusitado: ao momento em que decidi escrever sobre teatro. Essa origem parafraseia Roland Barthes quando se deparou com o Berliner Ensemble em Paris. O choque estabelecido em Barthes pela encenação de Brecht, em confronto com o teatro burguês praticado na França, causou uma sensação que impulsionou sua perspectiva. Seus escritos sobre teatro aprofundaram o viés da materialidade. Minha visada, aliada à do crítico, se ajusta pela busca das singularidades da linguagem teatral que perfazem um movimento de resistência dessa esfera. O produto resultante do encontro entre a dramaturgia de Alejandro Jodorowski e a direção/desejo de Maria Alice Vergueiro ilumina as intenções em obra do primeiro e estabelece seus devires. O Teatro Pândega de Vergueiro provoca apreensões que não almejam o esclarecimento, mas materializam as tensões existentes na visão de Jodorowski, uma personalidade de difícil classificação. A combinação entre a bufonaria do Pândega e o paroxismo do surrealismo – característica da obra de Jodorowski – dá a ver o trágico em sua performance de crítica. Essa sensação, que nunca tive com os filmes do diretor, só foi possível por meio de um evento que acontece ao vivo, em que o espectador é agente da mesma ação que se desenvolve no palco. A especificidade do teatro se faz visível na reação da plateia em uma performance crítica que transita entre a apreensão dramática e um riso que desabriga novos modos de percepção.
A questão da identificação e da presença

“Comprometer-se com um relacionamento, irrelevante ao longo prazo, é uma faca de dois gumes. Faz com que manter ou confiscar o investimento seja uma questão de cálculo e decisão.”
Zygmunt Bauman em Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos
O espetáculo Histórias de Amor Líquido é constituído por três tramas paralelas, organizadas de maneira fragmentada. O autor Walter Daguerre baseou-se, como fonte de inspiração fundamental para constituir sua dramaturgia, na obra do sociólogo polonês Zgymunt Bauman, em especial no estudo intitulado Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Desta maneira, opera-se no espaço cênico do Teatro Poeira, sob a batuta do diretor Paulo José, um sistema de procedimentos criativos em que situações fabulares, vivenciados por sujeitos ficcionais problematizados em sua individualidade e em graus variados de complexificação, são elaborados pelo autor do texto teatral numa aproximação com dados e conceitos apontados por Bauman na sua tese. O sociólogo discorre sobre visíveis mudanças nos relacionamentos afetivos instaurados pela pós-modernidade líquida (metáfora que muito vem a calhar e que se contrapõe à era das ideologias sólidas dos séculos passados) nas últimas décadas, provocando efeitos singulares no atual modo de pensar e agir com o próximo na contemporaneidade.
Imobilizações como proposta de encontro

TransTchekov, dirigido por Celina Sodré, é a formalização de um hibridismo: uma composição de fragmentos de Jardim das cerejeiras, de Tio Vânia e de A gaivota, além da inserção de textos autobiográficos dos atores. A cena é constituída por esses recortes, que se dão a ver, na maioria das vezes, sem uma linha de continuidade. A sensação provocada é mais a de algo que não sai do lugar, lembrando do que vê Thomas Mann na escrita do dramaturgo russo em que se estabelece um “o que fazer?”, um campo semântico associado à impotência. Em TransTchekov é como se todos os textos e os modos de representação fossem flashes fotográficos, como suspensões de um mesmo movimento que se revela como argumentação. O conteúdo, assim, se iguala ao da representação. A semelhança com a fotografia nos insere em uma paisagem de lembranças que é presentificada, mas sem deixar de conter o fato/sensação de que se trata de uma ausência.
Uma reavaliação das posturas individuais

Uma interrogação essencial a atravessar as estruturas da peça Oxigênio, da Companhia Brasileira, é de que modo o ator pode se colocar legitimamente no palco, diante do autor das palavras que profere, do colega com quem contracena e, em última instância, do público.
O texto do dramaturgo russo Ivan Viripaev exige esse autoquestionamento, na medida em que derruba as roupagens com que um ator costuma se travestir ao assumir um papel. Faz com que os personagens catalisadores do espetáculo, um assassino passional e sua musa cúmplice, se esfacelem, sobrevivendo apenas como artifícios para proveito dos narradores. Estes, à sua vez, também se desmantelarão.