Considerável risco e alguma obediência

Crítica da peça Capivara na luz trava, do Massa Grupo de Teatro

18 de dezembro de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

Capivara na luz trava trafega entre o teatro e a dança, ainda que muitos considerem reducionista estabelecer definições para cada manifestação artística. Sem se valer da palavra, o Massa Grupo de Teatro amplia o conceito de dramaturgia para além do plano verbal, apesar da inspiração para o trabalho remeter a um conto, intitulado Desengano, de Diego de Angeli. De certo modo, o texto permanece como pelo menos uma das bases de criação. A abordagem de determinadas questões, porém, não se constitui por meio da construção de um enredo ou de uma narrativa linear a ser facilmente decodificada pelo público.

Durante a primeira metade, o grupo sugere imagens vagas e genéricas aparentemente ligadas à selvageria das relações primitivas. O espetáculo traz à tona tanto a origem do mundo, um território a ser semeado, quanto um espaço apocalíptico, que suscita estranhamento. A partir de um dado instante (em especial, da inserção da cadeira de balanço como importante elemento cenográfico), a dramaturgia (assinada pelo diretor Fernando Nicolau e por Juan Guimarães, com supervisão de Viviane Mosé) se adensa e se torna mais específica. A cadeira vazia pode simbolizar uma tradição arraigada, uma autoridade familiar que não está mais presente. Diante dessa ausência, a desordem se instala. Mas a transição na dramaturgia da encenação, do geral para o particular, não limita a possibilidade de apreensão do que se vê. A apreciação da plateia não fica restrita a uma interpretação fechada, como se houvesse um sentido único a ser captado. Capivara na luz trava mantém a proposta de permitir que cada espectador realize a sua apropriação.

A chegada de um personagem desconhecido provoca uma sensação de ameaça no grupo. Ele traz o texto (num brevíssimo instante), que parece gerar a crise diante de uma ordem instalada. Esse personagem precisa ser igualado aos demais, o que significa um apagamento de sua identidade, a exemplo da cena em que seu corpo é coberto de barro. Ao mesmo tempo em que o corpo é esvaziado de suas especificidades, permanece como objeto a ser desbravado. A transição da cena da anulação do corpo do desconhecido/estrangeiro para a seguinte, na qual se juntam os demais atores, nus e com máscaras, evidencia o sentido da equivalência forçada com certo grau de obviedade. Entretanto, o contraste entre a sequência em que os atores executam – nus e com máscaras – a coreografia e o momento em que agradecem os aplausos do público – também nus, mas agora sem máscaras e desarmados – é interessante.

A tensão entre a afirmação da individualidade e a obediência ao pré-estabelecido não fica circunscrita ao plano temático do espetáculo. Capivara na luz trava é, sem dúvida, uma encenação que se lança no risco como projeto artístico, mas preserva certo grau de subserviência no modo como os corpos dos atores obedecem às indicações musicais, sem atritá-las. Motivações diversas dão origem a movimentos que acompanham de maneira harmônica a música. Os movimentos evoluem rumo a um acelerado jogo de repetições que provoca transformações em relação ao sentido inicial. Esta mecânica se dá numa cena tratada como passagem que transcende as bordas do espaço de apresentação, como travessia delimitada pela luz (iluminação de Fernando Nicolau e Vitor Emanuel) que recorta com precisão áreas do palco. Há, contudo, constante opção pelo lusco-fusco, pelo sombreado, pelo que escapa a apreensões imediatas.

Os atores (Clara Maria, Fifo Benicasa, Juan Guimarães, Luca Ayres, Mariana Dias e Sabrina Fortes) atravessam o espaço (aquecido pelos figurinos – de Luiza Fardin – em tons terrosos) pouco povoado, dotado de reduzida quantidade de objetos (além da cadeira, alguns bancos). O chão é coberto por folhas secas, sinalizando a relevância da natureza, elevada ao status de personagem por meio de uma partitura sonora que evoca vento, chuva, água. Engajados na realização de movimentos quase sincronizados, os atores revelam entrega visceral.

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio.

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