Como dedicar uma Balada

Impressões sobre a peça The Strange Undoing of Prudencia Hart

31 de julho de 2012 Críticas
Foto: Drew Farrell.

(Atenção: contém spoilers)

A peça de David Greig The Strange Undoing of Prudencia Hart, dirigida por Wils Wilson e realizada pelo National Theatre of Scotland (NTS), acontece em espaços alternativos, como pubs, bares ou restaurantes. No Festival Cena Brasil Internacional, no Rio de Janeiro, o palco dessa experiência fantástica foi o restaurante Cais do Oriente. Uma banda de Folk já está em plena ação enquanto o público entra no restaurante. Há a opção, amplamente aproveitada pelos espectadores, de acompanhar o espetáculo tomando vinho, cerveja ou alguma outra bebida. Os atores recebem o público em suas mesas e logo os engajam na função de rasgar guardanapos – que servirão como tempestade de neve no universo fictício em que se inicia a jornada da heroína Prudencia Hart.

A personagem-título é uma pesquisadora acadêmica de “Baladas de Fronteiras” que se dirige a uma conferência em Kelso, na qual sua fala sobre a representação do inferno é pouco apreciada. A vida acadêmica é retratada com ironia através de pequenas alfinetadas à comunidade docente, revelando rivalidades vaidosas e satirizando discursos engessados típicos do meio – como a defesa acrítica de qualquer tema pós-pós-pós-contemporâneo e a argumentação via teoria da negação – “nem Fronteiras, nem Baladas”. Nesse contexto, Prudencia é vista como antiquada e ingênua, apegada aos valores tradicionais das Baladas. Prudencia, no entanto, se vê realmente em apuros na companhia de Colin Syme, seu colega acadêmico – e twiteiro – nada agradável, com quem fica “presa”, impedida de voltar para casa após o Simpósio por causa de uma tempestade de neve. Enquanto aguardam resposta de um B&B (Bed & Breakfast – um tipo de albergue) num bar local, descobrem ainda que aquela é a noite de “karaokê selvagem”. Pior mesmo talvez seja quando a protagonista é obrigada a passar a eternidade com o Diabo, mas não é o objetivo agora narrar toda a história (e nem julgar qual a pior situação).

O que chamou a minha atenção na dramaturgia é que o autor não abandona a estrutura convencional de contação de história – mas, ao mesmo tempo, a comenta com humor, variando entre uma proximidade dramática e uma boa dose de distanciamento irônico. O texto comenta seus próprios procedimentos, tornando, assim, a forma de contar mais complexa. Essa consciência do processo narrativo é presentificada em diversos momentos, como, por exemplo, na apresentação da personagem principal, quando são dadas pelos narradores umas três ou quatro possibilidades de começo da história até que se dê a ação da ida à conferência. Mais adiante, a própria fala em rima do texto é tematizada em cena, ganhando uma função dramática oportuna quando a heroína descobre que o Diabo não tem “resistência” para versos. Assim como a estrutura tradicional do herói e os meta-comentários espirituosos (“witty” é a palavra) coexistem na dramaturgia de Greig, referências mundanas e míticas também estão em diálogo. A peça se desenvolve desconectada de uma convenção dramática fechada, permitindo que os atores assumam também o papel de narradores, além da elasticidade do jogo cênico que permite transformá-los em “carro” através da mímica coletiva e assumir, ainda, diversas funções menos figurativas.

O trabalho dos atores-músicos Andy Clark, Annie Grace, Aladair Macrae, David McKay e Madeleine Worrall é, sem dúvida, um ponto alto da peça. O elenco conduz a proposta cênica interativa com habilidade, transformando constantemente os espectadores em parceiros de cena. O modo como dirigem o olhar ao público por vezes é o suficiente para que a plateia assuma imediatamente o papel de acadêmicos numa conferência ou de baladeiros numa noite estranha de karaokê (inclusive em momentos de singalongs). Poder-se-ia dizer que o olhar é o principal condutor do jogo teatral que proporciona à peça uma vivacidade única, mas estão ali ainda palavras e ações que inserem o público na fábula através de um pacto muito menos sutil: um pobre espectador é montado por um ator e usado como moto, e um outro, menos sortudo ainda, é envolvido através de mímica coletiva numa espécie de bacanal.

Só a atuação de Madeleine Worrall como Prudencia já valeria a ida ao teatro. Madeleine faz opções inteligentes em cena – sua aproximação generosa em relação à personagem (assumindo os momentos de fragilidade sem reduzi-la apenas ao risível) não impede uma atuação pontuada de um humor perspicaz. Ela consegue ter uma visão crítica e humorada da personagem (não falo aqui das palavras do texto, mas sim das escolhas da atriz: intenções, tom de voz etc.) sem perder a entrega no aqui-e-agora do jogo teatral.

Foto: Drew Farrel.

É o encontro de Prudencia com seu objeto de fascinação – o Diabo – que desencadeia a grande transformação da heroína. O Diabo, possuidor de inúmeros disfarces, é interpretado por David McKay – outro ótimo ator, que eu diria ser tão autoral quando Madeleine Worrall, fugindo de construções de personagem óbvias. O texto colabora: o Demo aparece primeiramente como um gentil proprietário do B&B e dono de uma biblioteca que contém TODOS OS LIVROS DO MUNDO – ESCRITOS E NÃO ESCRITOS. A acadêmica é capturada e, apesar de seduzida pela possibilidade de eterna catalogação bibliográfica, anseia por liberdade. Ambos os atores usam as possibilidades de “fissura” dos personagens para criar alguma tensão com o cômico. A impressão que tive é que o espectador está, na maior parte do tempo, rindo ou quase rindo, e quando é surpreendido com algum “ponto de fissura” – explico: quando o ator consegue dar, por poucos segundos, uma compreensão dolorosa da situação – há então um redimensionamento positivo na recepção da peça. A privação da liberdade de Prudencia ou a entrega amorosa seguida da dor da perda – patética, mas dor – do Diabo, quando sua vítima escapa, são exemplos de possibilidades de fissura que a dramaturgia oferece. Outro momento que funciona como fissura (não emocional, mas na atmosfera criada pela encenação) é durante uma cena coreografada em que os atores Worrall, McKay e Andy Clark sugerem, através de uma partitura física em movimentos lentos e com o suporte de um belo coro vocal, o envolvimento romântico-sexual de Prudencia com o Demo.

Outro personagem significativo é Colin Syme (interpretado por Andy Clark), cuja habilidade festeira o torna a sensação da noite de karaokê, contrastando com Prudencia, que foge para o banheiro com fobia social. Mas, ao final, Colin se torna objeto de afeto de “Pru” (como a chama) e parceiro na luta contra Satã. Certas características do personagem Colin Syme, movido por interesses mais superficiais, talvez tenham reduzido as possibilidades de Clark dentro dessa zona de “fissura” em que os atores Worrall e McKay encontram novas camadas para suas composições. De todo modo, Clark é um grande catalizador da participação do público, com números de karaokê divertidos e falas que fazem referência a vários “assuntos do momento”, como Lady Gaga, facebook e os últimos dispositivos tecnológicos.

O encontro, que tem a duração de um milênio de aprisionamento por Lúcifer ou, quem sabe, apenas minutos de delírio da protagonista desmaiada na neve, é suficiente para a grande transformação da heroína. Prudencia, antes acuada, sem saber o que cantar naquela festa de karaokê, retorna do estranho pesadelo dos infernos e dedica um hit do pop ao Demônio, aquele que a transformou profundamente. A teoria do interlocutor implícito é a lição da noite de karaokê, e a música de Kylie Minogue “I just can’t get you out of my head” é cantada em “estilo-luxúria”, fundindo-se aos poucos com uma balada de Folk. Fim da história.

Apesar da grande adesão da plateia, um lamento constante em relação às apresentações no Brasil foi a tradução para as legendas em português, não favorecida pela dinâmica corrida do Festival. Para além do estranhamento de parte do público em relação a opções de tradução por vezes pouco adequadas, no caso de The Strange Undoing of Prudencia Hart, as falhas foram particularmente agravadas pela exigência de rimas e de precisão métrica, que funcionam também como recurso dramático no texto original da peça. A tematização filológica demandaria um maior tempo de investimento na qualidade da tradução, que merece ser prioridade nos Festivais Internacionais que estão por vir.

Assumindo os spoilers, em minha defesa posso apenas dizer que, infelizmente, os leitores brasileiros da crítica que perderam a peça no Festival dificilmente terão a chance de vê-la. De qualquer maneira, a graça do espetáculo está no que escapa à simples narrativa da história, isso é o que torna a experiência teatral única. Portanto, quem tiver a chance de ver o NTS, não pense duas vezes. Pegue seu ingresso e sua taça de vinho e aproveite uma daquelas raras peças capazes de te fazer lembrar porque você ainda insiste em ir ao teatro.

Festival cena Brasil internacional: http://www.cenabrasilinternacional.com.br/

National Theatre of Scotland: http://www.nationaltheatrescotland.com

English version: http://www.questaodecritica.com.br/2012/07/how-to-dedicate-a-ballad/

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores