Radar encontra Radar

Breve nota sobre um festival de teatro experimental em Nova York

22 de fevereiro de 2011 Estudos

Estar em Nova York pela primeira vez e não querer fazer turismo. Tarefa duríssima tendo em vista a vasta quantidade de atrativos que esta cidade possui. E a coisa se complica ainda mais se você chega no dia 31 de dezembro, os que lá vivem estão em recesso por causa das festas, as ruas estão entupidas de turistas, o comércio só pensa em faturar e, claro, os teatros estão de portas fechadas. Como? Eu disse “os teatros estão de portas fechadas?” Que teatros? Os da Broadway estão a pleno vapor, lotados como sempre, com um cardápio que inclui desde o fatigado Fantasma da Ópera até vibrantes novidades como Fela! Mas, como eu disse, não fui a Nova York fazer turismo.

Qual seria, então, o teatro de meu interesse por essas bandas? Off Broadway? Off Off Broadway? E onde encontrar? Comecei minha pesquisa dia 3, o primeiro dia útil do ano. Minha única referência era o La Mama Experimental Theatre Club. Eu já tinha ouvido falar deste espaço no Brasil, principalmente por coisas escritas pelo Gerald Thomas, que sempre se disse cria da casa. Joguei no Google e rapidamente descobri que ficava no East Village e que já no dia cinco teria espetáculo. Vi a peça que estava passando, Being Harold Pinter, mas não prestei muita atenção no que se tratava, porque, independentemente do que fosse, eu iria lá conferir. A peça começava às sete horas e eu, inocentemente, cheguei às seis. Claro que já estava lotada. Tentei dar uma de carioca dizendo que iria retornar ao Brasil no dia seguinte, mas não teve jeito, fiquei do lado de fora. Voltei à bilheteria pra perguntar se eu podia comprar para o dia seguinte, mas as sessões estavam esgotadas até a semana seguinte. Tudo bem que o teatro é pequeno, mas a peça é experimental, pensei eu. Dei um tempo pelo pequeníssimo hall do teatro, olhei tudo em volta, mexi nos flyers que estavam espalhados numa mesinha e apanhei um caderninho que estava por ali também. Foi então que eu descobri que a peça Being Harold Pinter fazia parte de um festival de teatro experimental, o Under The Radar Festival, que estava começando exatamente naquele dia. Folheei o caderninho com a programação e vi que na Lafayette Street, uma rua próxima a que eu estava – a 4th Street, onde fica o La Mama –, outra peça teria início num lugar chamado The Public Theatre. Corri para lá, mas o espetáculo que eu tinha visto no caderninho, Ameriville, também já estava lotado. Fui até a bilheteria e pedi ingresso para um espetáculo qualquer. A atendente me deu um ticket para uma peça que começaria dentro de meia hora, ali mesmo. Foi só então que eu consegui relaxar, pegar um café no bar e dar uma boa olhada em tudo. O The Public Theatre é um lugar grande, com um hall espaçoso e três salas de apresentações. A peça que eu iria assistir aconteceria na sala maior e se chamava Diciembre. Fui ao caderninho para ler sobre e então descobri que era do grupo Teatro en el Blanco, do dramaturgo e diretor Guilhermo Calderón. Esse mesmo grupo esteve recentemente no Rio apresentando Neva, dentro do Tempo Festival, um espetáculo que realmente me arrebatou. Sendo assim, minha primeira experiência teatral em Nova York seria chilena e com ótimo antecedente.

Diciembre se mostrou, para mim, uma continuidade da pesquisa do Teatro en el Blanco: quando o público entra, os três atores já estão na cena, que é composta apenas por uma mesa, três cadeiras e dois conjuntos de lâmpadas coloridas que são manipulados pelos próprios atores ao longo do espetáculo. Assim como em Neva, o espetáculo é verborrágico e o público tem que se esforçar para acompanhar a legenda eletrônica. Diciembre se passa na noite de Natal e narra a história de uma família chilena afetada pela guerra, no caso uma guerra que acontece em 2014 entre aquele país e o Peru. O jogo principal se dá entre três irmãos – um rapaz que é soldado e está passando o Natal em casa e suas irmãs gêmeas, que estão igualmente grávidas. Há, além de uma clara crítica sócio-política, um humor corrosivo que permeia todo o texto e um clima de farsa toma conta da encenação. Em mais de um momento, um personagem conta algo terrível ao outro, para logo em seguida dizer que era brincadeira, que só queria fazer o outro relaxar; as duas atrizes saem de cena em ocasiões separadas e voltam travestidas de um outro parente; e no final, estas mesmas atrizes revelam que a gravidez exibida não passava de sacos de areia.

Li Diciembre como uma farsa que critica outros tipos de farsas, familiares, sociais e políticas, tendo como ponto de partida o estado de exceção, a guerra. Por isso estranhei quando os atores agradeceram os aplausos como que emocionados. Hora mais tarde, fui falar com eles no hall do The Public Theatre e então fiquei sabendo que eles tiveram problemas com a luz e que por isso a apresentação não tinha sido boa – o que explicava a cara de tristeza ao final. Senti em Diciembre um certo alongamento do tempo interno do espetáculo que gerou um cansaço que não tive no trabalho anterior. A manipulação da luz pelos atores, o desenho dos personagens, a concisa cenografia e a ocupação espacial feita pelo elenco, tudo em Diciembre mostra a coerência do grupo, sua assinatura; mas penso que Neva atingiu com mais precisão seus objetivos.

* * *

Devidamente enturmado, só me restava assistir ao maior número de peças possível. Sendo assim, comprei ticket para ver Ameriville no dia seguinte. Preciso dizer que eu não estava sendo muito, ou nada, seletivo. Em primeiro lugar, porque se tratava de um festival com espetáculos de diversos países, ou seja, me interessava ter contato com as mais diversas experiências cênicas; em segundo lugar, meu inglês é precário, o que significa que eu perco muito do que é dito em cena, mas que não prejudica minha apreciação da proposta conceitual do projeto.

Ameriville aconteceu no mesmo The Public Theatre, mas em outra sala, um pouco menor e em formato de semiarena. O grupo é de Nova York mesmo e se chama Universes. Com cenário composto apenas por um tablado de madeira de mais ou menos 4m x 4m, uma tela feita também de madeira ao fundo, duas mesas e quatro cadeiras, Ameriville começa com um longo número musical realizado pelos quatro atores – três homens e uma mulher, sendo que dois homens são negros, enquanto o outro e a mulher têm origem latinoamericana. Não há músicos em cena, são os próprios atores-cantores que dão o ritmo das canções, com as mãos, com os pés, com a boca e diversas outras partes do corpo. A primeira impressão que eu tive é que estava diante de atores com aquele tipo de formação que faz com que o sujeito aprenda a cantar, dançar, tocar um instrumento, lutar esgrima etc. Mas meu preconceito foi sendo posto de lado, não só pelo talento do elenco – e eu estou falando de jogo cênico, não de virtuosismo maneirista – mas principalmente pela proposta do espetáculo como um todo. Ameriville usa de recursos do mais exemplar espetáculo americano para fazer uma crítica contundente dos Estados Unidos da América. A opção pela arena, a ausência de objetos e figurinos e o uso de imagens documentais, tudo me remeteu ao teatro de Bertolt Brecht. Segundo seus escritos, Brecht pregava que o teatro deveria ser pensante – político no termo mais abrangente e filosófico do termo – mas nunca chato; entretenimento, de outro nível, mas ainda assim entretenimento. Acredito que em Ameriville esse intento é perfeitamente alcançado: através de pequenas cenas em que os atores assumem personagens e situações diversas, recortes de jornal, dados estatísticos sobre a situação social americana e muita música – os songs de Brecht? – ficamos sabendo um pouco mais sobre a precária situação de Nova Orleans, que é composta majoritariamente por negros; sobre a contraditória condição dos imigrantes formada sobretudo de hispânicos, que sofrem preconceitos e perseguições, mas são parte fundamental da economia americana; ou ficamos sabendo que 40% dos sem-teto americanos serviram o exército.

Dia seguinte, outro espetáculo, dessa vez no Robert Moss Theater, que fica no outro lado da rua do The Public Theatre. Mas a peça em questão era um filme. Exatamente, ou quase exatamente. Bonanza, que é apresentado pelos seus realizadores como um filme-teatro, é uma espécie de documentário sobre talvez a menor cidade do mundo, que se chama exatamente Bonanza e fica nos Estados Unidos. A cidade só possui sete casas, outras famílias que lá residiam foram embora e os moradores restantes são bem singulares. Ao entrar no teatro o que se vê é uma grande maquete da cidade, suspensa da metade do palco para cima. Na metade de baixo, cinco telas e em frente a essas cinco telas, cinco projetores de vídeo. O documentário é apresentado simultaneamente nessas cinco telas, ora com todas mostrando a mesma imagem, ora mostrando imagens diferentes. E a única coisa que acontecia digamos, ao vivo, era a mudança de luz sobre a maquete, e dentro da própria maquete (as luzes das casas, os postes de luz das ruas). A história é interessante, mesmo sem entender muito consegui captar que aquele vilarejo repetia, à sua maneira, tudo o que acontece numa metrópole, mas com a diferença de que o fato de serem pouquíssimas pessoas se relacionando entre si deixa a coisa toda com um ar muito bizarro. Entretanto, tendo a achar que esta apresentação não pode ser enquadrada como teatro, ou mesmo filme-teatro, e por um motivo bem simples: não tem ator. O que me fez recordar o polêmico espetáculo que Bia Lessa dirigiu em 2002 no CCBB, uma versão de Casa de Bonecas na qual apenas no monólogo final tínhamos a presença viva da atriz Betty Gofman. Não quero parecer antiquado, mas acredito que a presença humana é a única coisa que separa o teatro das outras artes. Por isso sou da opinião de que Bonanza é um documentário experimental, não uma peça de teatro.

Bonanza me fez lembrar, também, de um outro espetáculo que vi no Brasil: Super Night Shot do grupo anglo-germânico Gob Squad (grupo do qual também falarei, porque eles também se apresentaram no Under The Radar). Em Super Night Shot, também ficávamos diante de quatro telas acompanhando o desempenho de quatro performances pela cidade. Entretanto, neste espetáculo, os performances registravam ao vivo, cada qual com sua própria câmera, suas andanças pelas ruas a fim de cumprirem uma missão: achar alguém disposto a beijar o herói (ou a heroína) do grupo. Outro detalhe que pra mim é importante: a edição dos vídeos era feita na hora pelos integrantes do Gob Squad, eles decidiam, ao vivo, qual dos quatro vídeos teria o volume do áudio aumentado, o que obviamente fazia com que o público passasse a prestar atenção no performer escolhido. Cheguei a ir até a cabine técnica para perguntar aos diretores de Bonanza se eles estavam editando os vídeos na hora e eles me confirmaram que não, que já estava tudo pronto. Isto me fez ter certeza de que a experiência era muito diferente daquela realizada pelo Gob Squad.

Kitchen (You’ve never had it so good), o trabalho que o Gob Squad apresentou no Under The Radar, tem como ponto de partida o filme Kitchen, de Andy Warhol, que se passa todo numa minúscula cozinha. Antes de continuar a escrever sobre este trabalho, preciso dizer que tive a sorte de ver nesta minha estada em Nova York a exposição dos filmes experimentais de Warhol no MoMA. Esta feliz coincidência me deixou mais apto a apreciar o trabalho do Gob Squad, por compreender melhor a paródia que o grupo estava fazendo em cima da produção fílmica do artista americano (porque, além de Kitchen, o Gob Squad faz referências também a Sleep, Kiss e a seus inúmeros screen tests).

Ao chegar no teatro, o público é recebido pelos atores e, antes de se sentar, tem que dar uma volta pelo palco, ou seja, passar por dentro do telão branco que separa o palco da platéia. Do lado de dentro do telão, há três ambientes organizados como estúdios de televisão, um quarto, uma cozinha, e um terceiro com duas cadeiras à frente de um pano preto. Quando o espetáculo começa, percebemos que o grande telão branco é como uma tela de cinema dividida em três partes que mostram os três ambientes. A imagem principal é a da cozinha, por isso ela fica no meio do telão. À esquerda fica a cama, em que a atriz do grupo simplesmente dorme, e à direita fica o close de um dos atores, que permanece o tempo todo olhando a câmera, como nos screen tests de Warhol. Na primeira parte do espetáculo, os dois atores que estão na cozinha fazem uma espécie de apresentação do que vai acontecer ali (do que vai acontecer na cozinha, mas também acaba sendo uma apresentação da peça como um todo). Eles iniciam o filme experimental, mas este começa a receber inúmeras interferências da atriz que até então estava dormindo e a do ator que participava do screen test. A partir de um determinado ponto, os atores se dirigem à platéia e catam espectadores para participarem do espetáculo. Uma mulher é colocada no screen test no lugar do ator, outra é posta pra dormir e uma terceira vai para a cozinha. A que vai pra cozinha recebe um headphone e passa a contracenar com os outros atores obedecendo ordens do ator que ela substituiu (que agora se encontra sentado na platéia com um microfone com o qual passa as ordens para a referida mulher). Em determinado momento, os outros atores também fazem com que as pessoas da plateia que foram colocadas em seus lugares, atuem em seus lugares. E, ao final, o palco está ocupado somente pelo público voluntário.

A tentativa de reconstrução da cozinha de Andy Warhol, que nos anos 60, quando o filme foi feito, era um dos expoentes do experimentalismo na arte e um questionador do comportamento americano vigente, o uso intenso de tecnologia, a participação direta da platéia, o humor… Com estes ingredientes, o Gob Squad consegue, uma vez mais, construir um espetáculo experimental provocador, tecnicamente bem feito e de grande comunicabilidade com a audiência.

Dos quatro últimos espetáculos que vi em Nova York, falarei apenas de um deles. Os outros três não tenho condições de analisar, um porque se tratava de um stand up comedy inglês – The Interminable Suicide of Gregoy Church – em que o performer atua sem nenhum recurso cênico, apoiado apenas na sua incrível verborragia, o que não me permitiu entender praticamente nada (como já disse meu inglês é precário); outro – o canadense Phobopholia – porque me pareceu um tentativa de teatro ritual do qual não disponho de meios conceituais para analisar; e o terceiro – o francês Vice Versa, adaptado de um livro britânico: a peça fala de um cara que descobre uma doença e começa a se relacionar com ela. Mais uma vez fui derrubado pelo meu inglês insuficiente, já que a encenação era propositalmente despojada e com poucos signos em que eu pudesse me amparar para uma melhor análise.

Encerro assim minha resenha com Your Brother. Remember?, do americano Zachary Oberzan. Sozinho no palco, sentado, com o apoio de um violão e de inúmeros vídeos, Zachary conta uma história pessoal vivida com seu irmão, Gator. Na adolescência, Zachary e Gator tinham como hobby refazer, de maneira caseira, filmes de ação, entre os quais Kickboxer – O grande dragão branco, de Jean-Claude Van Damme. Em algum momento de sua vida, Gator é preso por um crime relacionado a drogas e passa anos na cadeia. Depois que ganha a liberdade, Zachary propõe, e o irmão aceita, que eles refaçam, quadro a quadro, o filme caseiro que criaram parodiando Kickboxer. Então, o que vemos no telão são três vídeos: a paródia dos irmãos na adolescência, o filme do Jean-Claude Van Damme e a recriação da paródia dos irmãos nos dias de hoje. O curioso é que o filme do ator belga (conhecido segundo o Wikipédia como Os músculo de Bruxelas) também fala de uma relação de irmãos (o mais velho, que é lutador, fica paraplégico após sofrer um golpe covarde de um oponente; o mais novo, então, decide treinar para vingar o irmão). No início do espetáculo, Zachary abre com um texto sobre o amor e diz que seu nome é Jean-Claude Van Damme, o que é muito engraçado e arranca risos instantâneos da plateia. Ele faz uso de uma partitura gestual que é igualmente engraçada, uma partitura que ele repete a cada grande fala. Ao fim do espetáculo, vemos um vídeo do próprio Jean-Claude, falando o mesmo texto inicial de Zachary e com o mesmo gestual, o que é bastante inusitado. Se, por um lado, esta fala e este gestual ficam engraçados quando enunciados por Zachary, por outro, torna-se algo triste ao ser mostrado pelo enunciador original.

* * *

Oito espetáculos experimentais, de diversas partes do mundo, em um dos mais interessantes festivais do gênero dentro da cidade de Nova York. Uma pequena amostra da diversidade daquilo que entendemos por teatro experimental, com opções para os mais variados gostos. Não há dúvidas de que o underground, o alternativo, o experimental, são campos repletos de possibilidades. E de que são grandes responsáveis pela renovação das artes cênicas, inclusive as que fazem parte do que chamamos comumente de “comercial”.

Site do Under the Radar Festival: http://www.undertheradarfestival.com/index.php?s=1

Canal do Under the Radar no Vimeo, com trechos em vídeo de algumas peças: http://vimeo.com/17274922

Dramaturgo e diretor carioca, formado em Teoria do Teatro pela UniRio e com 15 peças encenadas, Walter Daguerre está atualmente em cartaz no Centro Cultural Correios com a peça “Chopin & Sand: Romance Sem Palavras”, sob direção de Jacqueline Laurence. Em 2011 Daguerre lança seu primeiro longa-metragem, “A Dois Passos do Paraíso”, como roteirista e diretor, ao lado de Cavi Borges.

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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