Diários do Théâtre du Soleil (2)
Depoimento sobre o processo de seleção e o estágio no Théâtre du Soleil – segunda parte
TERCEIRA SEMANA
Difícil escrever… escolher sobre o que escrever. Às vezes em uma semana de curso a única coisa que fica é uma imagem. Esta semana foi assim. Tivemos muito trabalho, cenas e mais cenas de Ion e Sócrates dialogando, a arte da rapsódia, a arte do ator. Equívocos e apontamentos. Como sempre mais equívocos do que apontamentos, mas é assim mesmo, quero dizer, o trabalho é assim.
E então, na tentativa de nos ajudar, Vassiliev falou de uma imagem que não me saiu da cabeça: que o jogo, a cena seria como dois cachorros quando estão brincando de se morder, na verdade os dois querem ser mordidos, eles esperam por isso, quando acontece eles fogem um pouco, mas logo estão de volta pra recomeçar a brincadeira. Com crianças é assim também, quando elas brincam de pega ou pique-esconde, elas querem ser pegas ou achadas, porque só assim a brincadeira pode continuar. É uma estratégia, é consciente, é estar fora da situação e dentro do jogo.
É MAIS SIMPLES
“É mais simples, teatro é muito mais simples” é o que Vassiliev vive repetindo para os atores do curso e o que eu tenho dito pra mim mesma agora e, no entanto, como é difícil escrever sobre algo que é simples.
Como falar que o que tenho sentido durante o estágio é que tudo não passa de um jogo? Ou de uma brincadeira de criança? Daquelas mais primárias que todos tem na lembrança. É assim que sinto e mais do que isso, são esses os exemplos, as imagens que ele dá. Como aquela imagem dos dois cachorros que brincam de morder. Eles querem ser mordidos, por isso eles vão e voltam, para serem mordidos de novo ou porque chegou a sua vez de morder.
Pelo menos até agora o que entendi é que para Vassiliev “jouer” se trata de algo mais ou menos assim: um acordo entre dois atores e não entre personagens. Eles partirão de um objetivo comum, que se encontra no final do texto, mas para chegar até lá eles concordam que estão em desacordo, que irão se morder. É isso que torna a ação possível, forças opostas. Armadilhas.
A questão é como fazer para cair nas armadilhas pré-acordadas? É preciso ser conscientemente um pouco ingênuo?
JOKERMAN
Dia 26 de janeiro de 2009, véspera da minha primeira entrevista no Soleil. Acho que o estágio começa aqui. Em frente ao computador, bebendo um vinho, fumando um cigarro e ouvindo Jokerman, versão ao vivo do Caetano, por enquanto essa será minha trilha sonora do estágio. Algo forte. Estou feliz, nervosa, mas feliz, ansiosa, mas feliz. Pensando em qual será a minha resposta para o que eu sei fazer com as mãos. Essa é uma pergunta da entrevista. Sim, eu já me informei. Nessas horas me pergunto o que eu estava fazendo enquanto minha avó costurava que não prestei atenção. Provavelmente vendo TV.
Outro item: descreva uma receita que você sabe fazer. E de novo a mesma questão sobre minha avó ou mesmo minha mãe. A sorte é que como há pouco tempo estou morando sozinha posso escolher entre sopa de ervilha ou salada marroquina, nada muito elaborado, mas… pensei em, sei lá, feijão, feijoada, bobó de camarão coisas mais brasileiras, mais interessantes aos olhos europeus mas eu já estou suficientemente nervosa pra inventar algo assim.
Quanto ao que sei fazer com as mãos pensei em cálculos, resquícios de minha formação em administração; cozinhar um pouco, cafuné, isso sim eu aprendi com minha avó; escrever, algo que estou tentado neste exato momento; e tudo que me ensinarem, achei que seria bacana colocar isso.
Enfim amanhã, 8:00 am, horário ingrato pois aqui ainda está muito escuro, estarei tentando explicar com meu francês macarrone porque quero tanto fazer o estágio no Théâtre du Soleil, quem sou eu, de onde eu venho, enfim coisas que já são difíceis de se explicar mesmo em português. Próximo passo: encontro com Ariane Mnouchikine, mas por enquanto “Jokerman dance in the nightgale tune…” Acho que vou a Londres.