Um drama musical

Crítica do musical Quase normal, dirigido por Tadeu Aguiar

23 de fevereiro de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

O espetáculo musical Quase normal, adaptação brasileira para o musical americano Next to normal, esteve em cartaz no Teatro Clara Nunes no ano passado e segue temporada nos palcos da cidade de São Paulo.

A estrutura mais descritiva do musical constrói um nexo causal entre as cenas que cria um princípio unificador. Assim, a recepção pode acompanhar o desenrolar da fábula. Sem dúvida, não se trata de uma história cheia de glamour evidente, mas se aproxima de uma linha de musicais da Broadway que se situam no universo temático do uso de drogas, de problemas sociais ou de questões ligadas à AIDS. Este viés mais deslocado chegou a gerar um dos espetáculos mais premiados – o musical Rent, que conta a história de um grupo de amigos morando na Nova York dos anos de 1980. O tratamento do tema familiar pela ótica do luto no texto de Tom Kitt em Quase normal, ganhador do prêmio Pulitzer em 2010 por ocasião de sua estreia, coloca o movimento do trabalho de arte que imprime o imaginário do espetáculo.

Quase normal mostra uma família, cujo cotidiano é marcado por uma espécie de adoecimento causado pelo trauma da morte prematura do primeiro filho do casal. A mãe teve seu psiquismo comprometido ao longo dos anos entre diagnósticos de esquizofrenia e bipolaridade, o pai, marido amoroso, tenta desesperadamente manter um ritmo tranquilo na casa e a filha mais nova cresceu sob a perda dos pais, tornando-se uma jovem de personalidade carente e obsessiva. Estes percursos antecedentes fragilizam as potências joviais da noção do amor entre o casal e descortina para a filha um horizonte de inseguranças.

O trabalho artístico da direção se mostra como resultado de uma compreensão de como traduzir estas tensões e forças na encenação. A atuação é uma manifestação sensível da mesma origem. A atriz Vanessa Gerbelli, como a mãe enlutada, expõe seus afetos com apuro formal sem recorrer a excessos interpretativos, o que nos aproxima dessa mulher em seu sofrimento, em suas dúvidas e tentativas de restabelecer seu equilíbrio psíquico.

O pai vivido por Cristiano Gualda nos oferece uma atuação segura, ao mesmo tempo em que expõe a fragilidade do seu personagem entre a memória reprimida do filho (que se nega a ver) e os cuidados para que sua família sobreviva docemente no caos. Carol Futuro, como a filha do casal, apresenta gestuais um tanto excessivos, mas que visivelmente querem dar conta das flutuações da personagem adolescente num ambiente que não consegue oferecer paradigmas para sua formação. O namorado da filha é vivido por Victor Maia em uma atuação leve, que oferece um contraponto ao clima mais tenso da família protagonista. O interessante é que seu personagem é o único que lida de modo livre com o imaginário, com os sonhos e sob o uso de maconha. Ele seria um candidato à “anormalidade” em termos sociais (pelo uso da droga), mas se mostra o mais “normal”, por assim dizer. A meu ver a atuação de André Dias como um médico frio e com voz semelhante à de um padre, acaba estabelecendo dicotomias e fixações que desfavorecem apreensões mais abertas. Aparece assim uma crítica tendenciosa aos tratamentos psiquiátricos. Olavo Cavalheiro vive o espectro do filho morto com distanciamento ajustado ao seu personagem.

Um importante elemento diferencial são os diálogos e falas cantadas de Brian Yorkey e com direção musical e regência de Liliane Secco, que não se oferecem como uma fruição mais esfuziante. Não saímos do espaço do teatro com nenhum refrão na cabeça, com nenhum jingle insistente, não somos estimulados a dançar nas cadeiras, assim como os atores não oferecem coreografias. Não existem clímax musicais e, portanto, nem os habituais aplausos em cena aberta. Esta sensibilidade estética da encenação passa pelo tratamento do assunto em questão, proporcionando novas estratégias para lidar com fatos da vida em direção contrária aos posicionamentos equivocados da mídia que nos são impostos. Porém, ao mesmo tempo, não deixa de perder certa força pela limpeza da encenação impressa nos figurinos, no cenário e nos movimentos dos atores.

Ainda do ponto de vista estrutural, a causalidade entre as cenas e seu excesso descritivo carecem de uma invenção que, por exemplo, a técnica de montagem poderia proporcionar. Isto torna a primeira parte do espetáculo um tanto cansativa. Mas a impressão é que a plateia acompanha a narrativa pormenorizada e parece ser cooptada pelos sentidos do drama. Ao final, o que acontece com a personagem da mãe nos faz lembrar da protagonista de Casa de bonecas de Ibsen, que vai em direção ao mundo numa busca de si mesma.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores