Um convite à trama: entre o real e o ficcional

Crítica de É culpa da vida que sonhei ou dos sonhos que vivi, de Iuri Kruschewsky

31 de agosto de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

É culpa da vida que sonhei ou dos sonhos que vivi fez uma primeira temporada dentro da Ocupação Artística Vem! do Teatro Gonzaguinha e agora segue em cartaz na programação da Ocupação Complexo Duplo, no Café do Teatro Gláucio Gill até 24 de setembro. Com texto e direção de Iuri Kruschewsky, recém formado pelo curso de Artes Dramáticas da UniverCidade, o espetáculo é um instigante e corajoso primeiro voo do artista. Podemos vislumbrar em seu trabalho a vontade de experimentar, o desejo de lançar questões que o fazer teatral pode proporcionar. O ano de 2012 para o calendário teatral carioca me parece interessante ao apontar a atenção para diversos trabalhos de jovens artistas que se lançam à prática teatral e que estiveram (e estão) em cartaz no circuito profissional. Há uma nova safra de artistas do teatro que está emergindo na cidade com trabalhos significativos e cheios de seriedade artística e profissional, que vêm dos seus respectivos centros acadêmicos ou de diferentes agrupamentos de artistas de diversas origens e formações.

Assim, acho importante destacar o espaço que as ocupações do Gonzaguinha, com a plataforma Incubadora, e do Gláucio Gill oferecem a esses jovens artistas e companhias em sua grade de programação. Essa iniciativa mostra que há um sentido positivo e eficaz no costumeiro (e relativo) jargão de que “há espaço para todos”. O sentido do espaço para todos, aqui, é de que podemos encontrar na curadoria artística de um espaço público o encontro do novo com a tradição, de trabalhos mais convencionais, tradicionais mesmo, com a energia inquieta de jovens artistas em busca da experimentação na cena e na dramaturgia. Considero ter esse espaço aberto para essas experiências fator de extrema importância, já que, a meu ver, ele faz circular diferentes públicos e proporciona a formação do mesmo, reunindo diferentes gerações e perspectivas artísticas.

No texto de É culpa da vida que sonhei ou dos sonhos que vivi, Iuri Kruschewsky procura criar um confronto entre o que é realidade e o que é ficção a partir da visão do personagem principal, que se situa também como o narrador do espetáculo, um escritor em crise com sua obra, seu casamento e sua amante. A partir deste mote, o espectador se vê diante do percurso do narrador/escritor (Bruno Quaresma), num limiar entre realidade e ficção. Confundindo as histórias que, ora parecem saídas da cabeça do personagem, ora vêm da própria realidade em que se encontram os personagens, o trabalho de Iuri instiga e questiona o próprio fazer teatral ali materializado.

Parece-me claro que o texto não quer dar a resposta a esse enigma dramatúrgico. O jogo entre o delírio do escritor e aquilo que é o real em seu cotidiano, impõe-se como força motriz do trabalho em questão. O que fica estabelecido na trajetória do espetáculo, e no tratamento dado ao texto e às atuações, é que essas fronteiras são tênues e movediças e que dentro do jogo teatral só irão embaralhar-se e trazer mais dúvida à recepção. É esse estado de confusão temporal e temática – e preponderantemente a partir da perspectiva de um personagem, a do narrador/escritor – que faz a cena girar e prender a atenção do espectador.

A encenação prioriza a aproximação do espectador ao jogo da cena. O público fica muito próximo à cena, o que possibilita uma recepção cúmplice. Após a acomodação do público há um black out e o narrador/escritor ateia fogo num papel que sai de uma máquina de escrever, bem ao centro do espaço cênico. É o início do jogo, da brincadeira que o trabalho de É culpa da vida que sonhei ou dos sonhos que vivi procura experimentar e dividir com o espectador. Logo após, uma fala do narrador/escritor expressa um comentário que reverbera essa situação de jogo metateatral: “É assim que sempre termina. Um pouco de magia, um pouco de fumaça, algo flutuando, mas não funciona sem um empurrão necessário. Vamos lá. Um pouco de risadas, um homem e uma mulher bonita. E amor. Vamos começar.” Neste comentário, há uma reflexão sobre a própria lida do escritor e, também, um convite ao público presente. Ser ou não ser ficção (dentro da inerente artificialidade que é uma peça de teatro) não é o mais importante aqui. O que o espetáculo procura mostrar é o caminho de um experimento cênico-dramatúrgico que joga com as temporalidades, com o imaginário do espectador e, sobretudo com as situações em que se encontram os seus quatro personagens. O escritor, o homem do bar, a esposa e a amante são caracteres artificiais construídos e inseridos dentro da trama do narrador/escritor, e daquela sugerida pelo autor.

A cenografia coloca os espaços do real e do imaginário em oposição constante, em extremidades que potencializam o confronto temporal e imaginário permanente. De um lado, sugere-se um bar com dois bancos. Ali funcionam as cenas do escritor com a mulher que ele chama para viajar com ele de forma inesperada, aparece Alex (Manoel Madeira), o personagem que mais carrega os traços de artificialidade da encenação e que surge como uma espécie de alter ego do escritor. Do lado oposto, há o quarto de hotel em que se encontra o escritor e sua mulher (Kelly Iranzo). Esse é o espaço em que se constituem as cenas em que a suposta realidade do escritor (e não o seu imaginário em ação) ocorre, onde a crise com o trabalho, com a mulher e com a amante (Mariana Pastori) se dilata. No centro, há uma mesa com a máquina de escrever, um símbolo que faz convergir a todo o momento a atenção do espectador para aquilo que o narrador/escritor narra, vive e quer mostrar. É desse ponto central e simbólico que parece emergir a força da narrativa proposta pelo personagem escritor, pelo narrador, pelo autor da peça e pelo conjunto da encenação.

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela Unirio.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores