Imersão na materialidade

Crítica do espetáculo Auch, do grupo chileno Teatro Phi

29 de agosto de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

O espetáculo Auch, apresentado no Rio de Janeiro na segunda edição do Festival De Trupe: encontro de grupos teatrais, organizado pelo grupo Milongas, situa o espectador no encontro de uma pletora de teatralidades, calcada no empenho dos integrantes do grupo chileno Teatro Phi de elaborar situações, ritmos, sonoridades e visualidades a partir do preenchimento de objetos como baldes, galões, latas e outros elementos, de utilidade cotidiana definida, no espaço do palco. A escrita cênica da peça se define pelo rigor com que os atores-performers executam partituras de movimento e outras criações coreográficas de visível complexidade.

O fio narrativo da encenação é composto, basicamente, pelo desenvolvimento potencial dos corpos que dominam e manipulam, até o esgotamento físico, situações de força e resistência no trato com os elementos cênicos. Nesse emaranhado de concretude, surgem parcos instantes de situações fabulares reconhecíveis, que só vão adquirindo contornos definidos quando as ações parecem ironizar o próprio acontecimento cênico. Um exemplo que pode ilustrar essa operação é quando uma das atrizes erra, de propósito, um detalhe da coreografia, deixando um copo escapulir de sua mão. O grupo interrompe, de forma brusca, a execução dos movimentos e compõe um quadro estático, simulando gestos supostamente autoritários e expressões faciais de caráter repreensivo. Em vão, ela tenta retornar ao percurso inicial e fingir que nada aconteceu.

Podemos supor que a montagem é estruturada segundo a lógica que evidencia uma pluralidade de enfrentamentos em sua poética. Por um lado, percebe-se um esforço que se quer sobre-humano, por parte dos atores, em ter que alcançar e superar seus próprios limites em nome de um apuro técnico gestual-vocal, sempre em ritmo acelerado. Por outro lado, a cadência de sensações, provocada pela fisicalidade dos corpos frenéticos dos atuantes, desafia o espectador na função sempre tensa de reorganizar a visualidade caótica dos sistemas cênicos e construir sentidos que se modificam no compasso e na intensidade de um fluxo.

Para além do espetáculo coreográfico, Auch chama atenção do espectador para a estrutura plástica que reveste a encenação. O desenho de luz proporciona a ampliação de vários centros de atuação para os intérpretes, colocando todos eles em situação de constante exposição. O forte colorido da iluminação também realça tonalidades que indicam, para a plateia, a apresentação de uma sequencia de movimentos mais intrincada.

A teatralidade se intensifica no jogo com que a indumentária é pensada, em articulação com figuras que remetem às personagens extraídas dos quadrinhos ou de desenhos animados. As perucas usadas pelos atores e os demais penteados das atrizes valorizam o impacto estético que dialoga com o universo infantil. Há um delineamento na composição do conjunto que reitera um exagero nas máscaras faciais dos atores, fundando instantes de comicidade, sem que o grupo pronuncie sequer palavra. Esta, por sua vez, também é trabalhada na cena como material significante e produtor de sonoridade através da repetição de frases e sons inarticulados, principalmente nos instantes finais do espetáculo, quando os gritos dos atores ecoam em concomitância com a percussão dos instrumentos. Já os figurinos sugerem a ideia de macacões utilizados por profissionais da engenharia mecânica, ou também podem aludir a qualquer função que demande um esforço físico mais acentuado. Não há delicadeza no figurino. Há uma brutalidade, um certo aspecto envelhecido e gasto dos tecidos.

O sentido da encenação é direcionado para as possibilidades materiais que se desenham em cena, segundo um esforço que consiste em ressignificar e subverter a utilização volumosa dos caixotes, dos barris, dos baldes e dos demais dispositivos que se acumulam no espaço do palco e que são manipulados com apurada habilidade pelos atores. Auch consiste numa experiência que agrega criatividade e pulsão, domínio dos movimentos e rigor no ato de executá-los. É na agilidade das trocas dos objetos de um bailarino para outro, na exposição do atributo físico dos corpos, nos gritos e na algazarra que o tempo da encenação é demarcado e deixa a respiração da plateia em suspensão.

Pedro Allonso é ator e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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