O encontro com o novo público

Crítica da peça A ilusão cômica, de Pierre Corneille, com a Cia. Razões Inversas

13 de maio de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

A Cia. Razões Inversas faz temporada no teatro III do CCBB RJ com a peça A ilusão cômica. O texto do dramaturgo francês do séc. XVII Pierre Corneille até então inédito no Brasil ganha com a montagem da companhia de São Paulo o encontro do texto de um autor erudito à época com a base das técnicas de interpretação das comédias populares – principalmente da commedia dell’arte. Uma breve exposição histórica pode ser importante para entendermos como é interessante vermos a união destas duas formas hoje.

Para a crítica teatral francesa, durante os séc. XVII e XVIII, uma peça que se aproximasse das técnicas dramatúrgicas e de interpretação populares não recebia o status de arte, de teatro, ou pelo menos de bom teatro. As regras do drama (francês) foram estabelecidas a partir da Arte Poética de Aristóteles e eram para os dramaturgos ou aspirantes como uma cartilha da qual não se poderia fugir. Corneille, já na sua primeira peça não seguiu a famosa unidade de tempo, o que significa que o tempo para o conflito central se desenvolver, ou seja, o tempo para a história começar e terminar, excedia 24 horas na vida das personagens. Corneille foi um dramaturgo transgressor, ocupou um lugar de transição na história da dramaturgia francesa. Fugia do rigor das regras do drama, mas por outro lado mantinha-se fiel aos conteúdos de interesse do universo burguês.

O drama clássico francês, ainda focado em temáticas humanistas enquanto se abria ao romantismo, usava os percalços das histórias de amor romântico para transmitir os ideais de grandeza de caráter, nobreza de espírito e honra a uma sociedade que já estava em processo de individualização – caminhando para o individualismo da sociedade moderna. A ilusão cômica é exatamente deste período e trata desses temas. Na peça, além dos desencontros amorosos, há também um pai nobre que se arrepende de ter abandonado o filho e precisa rever seus valores. A dramaturgia é escrita em versos, porque a poesia era considerada uma arte elevada e que, por isso, os fidalgos e novos ricos “gostavam” de apreciar. A nova relação com a noção de indivíduo tornou os personagens mais reflexivos e filosóficos. No outro lado da balança social, no lado pobre, os personagens-tipos das comédias populares não estavam se transformando em seres com mais subjetividade, eram os mesmos “apaixonados”, “avarentos”, “patrões”, “empregados”, etc., e cujos temas não aspiravam um encontro com a altivez humana: falavam de ciúme, adultério, pobreza… Questões cotidianas. Por estes e outros motivos, os burgueses e aristocratas não aceitavam ver sua arte misturada à dos pobres. Muito menos ver um ator interpretando como um comediante popular.

Das teorias (do período) sobre como um ator deveria se comportar em cena, nenhuma trata dos atores das comédias do povo. As regras mais rígidas de interpretação para o ator do drama francês não resvalava nas noções de corpo do ator da commedia dell’arte, por exemplo. Fato que torna muito pouco provável que uma das comédias de Corneille tenha sido interpretada com bases nas técnicas populares naquele tempo – não conheço dados que comprovem isto, mas visto a rejeição que estes artistas sofriam, descritas nos livros de história do teatro, ainda que um texto direcionado aos ricos tenha sido interpretado à maneira popular, suspeita-se que a aceitação não tenha sido boa. Pois, agora, no século XXI, está sendo. Foi o que pude perceber a partir da recepção do público durante e após o espetáculo.

Este estilo de interpretação apraz o público carioca, uma vez que o teatro na cidade do Rio de Janeiro se fortaleceu, ao longo dos anos, por meio das comédias de caracteres (de situação ou de costume), que carregavam em sua forma (ainda carregam, sempre vemos as comédias a la Martins Penna em cartaz) um estilo de atuação que é, indiscutivelmente, herança dos velhos artistas populares de séculos atrás.

Mas o mais interessante da direção de Marcio Aurelio não é este encontro do burguês com o pobre. Penso que hoje isto não seria mais uma questão, uma vez que não percebo uma divisão drástica na preferência de conteúdo entre os públicos – a maioria das comédias comerciais em cartaz nos teatros mais caros da cidade não trata de assuntos muito distintos dos abordados nos programas de comédia de televisão que tem no “povo” o público alvo. Muito menos vejo uma preferência de interpretação – às vezes o ator do programa da TV é o mesmo da comédia cara, e está no palco fazendo a mesma coisa. O que tem de significante na direção é o olhar apurado para o texto. Corneille configura seus personagens num limiar entre o personagem psicológico do drama e tipo popular. O mais popular na peça, o “patrão”, que também é um velho que se apaixona fácil e é “avarento” está muito bem caracterizado com a máscara do Pantaleão, personagem da commedia dell’arte que tem as mesmas características. Os atores, dependendo do personagem, dão mais ênfase na tipificação meio farsesca ou na construção psicológica. O texto tem a moral burguesa da história, mas tem também uma reverência ao artista popular. O filho abandonado pelo pai nobre termina por se tornar ator do povo, que viaja com sua trupe mambembe pelas cidades do reino. Aí está a voz de Corneille, dizendo que esta divisão entre o que é erudito e o que é popular, o que é do pobre e o que é do rico, não fazia o menor sentido. Não faz o menor sentido.

Se hoje temos um público quase padrão (que não se diferencia em classes) para as nossas comédias, é porque bastante deste passado foi quebrado. É claro que os pobres não frequentam os teatros do shopping toda semana (provavelmente nunca) e o rico vai continuar fingindo que não assiste aos programas de comédia popular, porém, o que está sendo evidenciado é que aquela preferência de conteúdo e modo de interpretação não existe mais. E é por isso que as pessoas vão ver “Corneille” e saem dizendo, como eu ouvi de uma adolescente “nem pareceu Corneille”. Incrível, como se ela conhecesse muito bem o dramaturgo, que tratou, como seus contemporâneos, basicamente, dos mesmos temas que nos interessam até hoje, e que, portanto, não são inacessíveis . É que nós ainda mitificamos palavras como “clássicos”, “franceses” e “texto inédito”, e fazemo-nos acreditar que eles são difíceis de assistir. Se Corneille continua a ser encenado não é porque é Corneille, é porque o que está escrito ainda tem um quê de atual, ainda comunica. Tem muita gente ainda querendo ir ao teatro para pensar sobre amor e fidelidade, estas pessoas podem ir ver A ilusão cômica sem receio de “não entender nada”. Corneille, suponho, não queria parecer hermético para ninguém. Tanto que escreveu peças com personagens para agradar a todos.

Para concluir, sobre a atualidade, sobre nós, é maravilhoso (não vou resistir aos adjetivos) que não se privilegie estilos de interpretação. O ator não é um profissional que tem que obedecer ao gosto da sociedade do seu tempo; e é ótimo poder perceber certa “igualdade” de conteúdos, só não é melhor, porque nós, realmente, precisamos rever estes conteúdos em questão.

Obs.: O “público”, nesta crítica, foi tomado como um todo de gosto homogêneo, mas obviamente não o é. A intenção da generalização era somente a de fazer uma comparação histórica. Mas acredito que esta generalização dá conta da maioria dos espectadores de teatro, que não são esses que estão frequentando os teatros que recebem espetáculos ditos alternativos.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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