Entradas e desmoronamentos
Crítica da peça Adeus à carne ou Go To Brazil de Michel Melamed
Fracasso, talvez. Digamos que a peça Adeus à carne ou Go To Brazil de Michel Melamed é atravessada por uma série de fracassos e desmoronamentos, cenas que deliberadamente parecem não se constituir de maneira sólida, como uma escultura em gesso que nunca se solidifica.
Organizada como uma escola de samba, a peça é mais um carnaval mal ajambrado e com a frieza própria aos carnavais que se tornaram a regra. Mas, diferentemente das escolas de samba, os personagens, na peça, estão sempre no limite do patético, do grotesco, do fracasso dos corpos e das tentativas de alguma relação entre eles e com algo que lhes escapa: a política, a mídia, o amor, a alegria.
O fracasso assume assim duas posições. A primeira é narrativa, performática. Um casal que nunca se encontra, corpos que não resistem, torturas as mais diversas, músicas que nunca se completam. A segunda é na própria peça, ou seja: trata-se de uma peça fracassada, não como espetáculo ou sob qualquer padrão de medida pautado pelo espetáculo, mas em sua própria lógica. O final da peça, por exemplo, acontece umas três vezes, deixando o espectador sem saber exatamente quando aplaudir, levando a peça quase a um abandono. O final é de tal forma truncado que aos espectadores não é dada a possibilidade de ficar de pé – o que parece ter se tornado quase uma exigência em qualquer peça hoje. Nesse sentido, Adeus à carne, impõe seu fracasso.
Mas que fracasso é esse? Talvez seja o fracasso mesmo que celebramos no carnaval. O fracasso da ordem e das narrativas do ano. O fracasso da clareza dos papeis; homem, mulher, morto, vivo, animal, humano, feliz, infeliz, etc. Em torno desses desmoronamentos, várias performances se constituem, algumas com grande exuberância cênica, outras simplesmente ridículas. Mas o ridículo – como as cabeças com símbolos de emissoras de TV – parece absolutamente necessário para constituir a atmosfera de liberdade que atravessa toda peça. Uma liberdade carnavalesca, alcançada aqui com o fracasso. Um ridículo e um patético que não é jamais ingênuo. Na verdade, que pode haver de mais livre hoje, se não a certeza do fracasso?
Em um momento Joãozinho Trinta, no final da peça, quase todos os grandes objetos (carros) – alegóricos – vão para cena. A bagunça e a sujeira assumem o comando, desmoronando o que ainda sobrava da ordem, o que ainda se mantinha em pé, fazendo com que mesmo o requinte presente nos figurinos e nos objetos fracasse.
Deliberadamente, e não porque apenas seis atores participam da peça, não há formação de uma massa festiva e, sem ela, não há carnaval. O exemplo máximo dessa impossibilidade é o próprio desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. A estratificação do espaço do sambódromo em setores, arquibancadas, pistas, camarotes, convidados e famosos, impede que a massa se efetive. No caso, é a própria arquitetura que impossibilita o carnaval. Entretanto, em Adeus à carne, não é pelo esquadrinhamento classista que a massa falta, mas pelo fracasso dos indivíduos em conseguir constituí-la. A fragilidade dos corpos e sujeitos não consegue efetivar um corpo único. Enquanto um chora, outro ri, enquanto um cala outro fala, ou, ao mesmo tempo, cada um constrói um movimento que desarmonicamente não produzem um comum. Mesmo quando uma massa, não festiva, mas de revolta, parece que vai se forjar, são cartazes brancos que vêm à cena, sem efetivar nenhuma unidade que dê à massa a ligação necessária para que ela exista.
Sem concretizar uma massa, é a própria festa que não se efetiva. O caos que ronda as cenas não é eufórico, é muito mais um caos angustiado de quem não atinge o que gostaria de atingir – o próprio caos, talvez? Há uma frustração nos personagens, talvez porque a prometida alegria nunca chegue, nunca se instaure. Sem a massa, frustrados com a ausência do próprio carnaval, a peça mobiliza pelo seu fracasso; mimetizando, talvez, a dificuldade mesmo do carnaval, sua gravidade e limites de uma ruptura efetiva com roteiros, esquadrinhamentos do tempo e do espaço.
O espectador é mobilizado, tocado, pelas infindáveis tentativas de carnaval, pelas contínuas tentativas e frustrações, pela liberdade de quem se põe a inventar entradas – mais uma e mais uma…. – pela liberdade de quem está continuamente tentando o carnaval; crente em um momento em que a massa se efetivará e que a intensidade de um conjunto ganhará a cena – cena/mundo. A peça se organiza assim com um desfile de entradas na possibilidade do carnaval. Entradas que trazem junto sequências de tristezas – sem fim, felicidades tristes ou como uma lágrima de amor – fracassos e desmoronamentos sem nenhum iconoclasmo, pelo contrário, com eles vêm uma liberdade e uma força estética que transpiram o próprio engajamento da peça com o mundo que o cerca.
Cezar Migliorin é professor do Departamento de Cinema e Vídeo do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF, e Coordenador do Lab. Kumã – Pesquisa e experimentação em imagem e som.