Blogs bethânios, ERROuanets e cidadania da multidão

Artigo sobre políticas públicas, polêmicas com a Lei Rouanet e sistemas de crowdfunding

28 de março de 2011 Estudos

Você deve ter ouvido algo a respeito. O mundo precisa de poesia – projeto audiovisual de Maria Bethânia e Andrucha Waddington em formato blog, que prevê a postagem diária de video-pílulas poéticas interpretadas por Bethânia – é o assunto do momento. Desde meados de março, a polêmica ao redor da cifra milionária aprovada pelo Ministério da Cultura – 1,3 milhões de reais, dedutíveis do imposto de renda do patrocinador via Lei Rouanet – tem dominado a blogosfera tropical e as redes sociais tupiniquins, ocupando timelines e posts até mais que a visita de Barack Obama ao Brasil e os perrengues escrotos na Líbia de Kadhaffi.

Pesem as malcriações, faíscas e até queimaduras que surgem como efeitos colaterais do trato negligente do assunto por setores da mídia comercial, a ocasião é comemorável. Batemacumbaieiê da melhor qualidade? Pois sim. Todo processo de desenvolvimento pressupõe refazimento, e este, muitas vezes, surge mesmo de uma ou várias naturezas de embate. Ou não é? E embate consciente, com todos empunhando, por exemplo, os artigos da contraditória Lei Rouanet? Nem sempre. Há o retweet, o post e o compartilhamento descompromissados, assim como há os com conhecimento de causa, mas mesmo os do primeiro tipo – ainda que, possivelmente, menos estruturantes – dizem respeito a uma pulsão legítima de protesto, feita possível por lacunas de transparência e fomento deixadas pelo próprio Estado. Se estes repasses indiscriminados de informação não colaboram de forma direta, ou melhor, de forma linear, para a discussão e apenas fazem barulho, ainda assim cumprem papel nada descartável para o processo de desenvolvimento do organismo que se discute: o papel de ampliadores do alcance do debate. É também graças ao disseminador – chamado por parte dos debatedores de – ignorante, que estamos diante de uma das maiores discussões sobre os atuais mecanismos e orientações da economia artístico-cultural do país. E é disso que se trata a internet. A rede mundial de computadores não se pretende uma conversa entre iguais. Seus benefícios residem justamente nessa diversidade inerente e em seu potencial caótico. É este caos que ativa, às vezes forçosamente, a co-laboração e o processamento coletivo em larga escala das informações de interesse público – antes restritas a um número menor de pessoas. E se, como diz Julian Assange, “compartilhar informação é compartilhar poder”, que o compartilhamento prevaleça, mesmo que os ruídos existam. O purismo a respeito desses compartilhamentos, mesmo que evitasse mal-entendidos como o do caso Bethânia, sacrificaria tensões que permanecem mais produtivas que nocivas ao comum.

Além disso, é preciso que nos abramos para algo óbvio: se um número relativamente grande de grupos, de origens diversas, estão convergindo suas atenções para um debate de ordem legislativa, mesmo que de uma forma não idealizada, que comece a batucada! Estes são sintomas de emancipação e saúde social, caro leitor. Sim, é preciso escapar da cultura de reclamação (que insiste em nos acompanhar, sem nos engajar em, objetivamente, realizar as mudanças que queremos), mas há uma diferença entre isso e o posicionamento participativo, que também é ação. Nossa subjetividade – mais do que nunca – é produzida em conjunto, e as redes sociais são hoje o palco maior dos contínuos e polifônicos embates políticos contemporâneos. Sua timeline pode ser considerada o mega-fone pós-moderno, João! E cada um de seus posts pode ser uma ação com poder de contágio e transformação nada pequenos. Este “espaço comum” em atualização constante e selvagem, aliás, às vezes me recorda aspectos das tradições de oralidade, como, por exemplo, os debates em praça publica da pólis grega. A cidade debatendo seu próprio devir em um moto-contínuo “atemporâneo” e não submisso ao que convém. Às vezes alguém sai arranhado sim, e é uma pena que tenha sido nossa digníssima Maria Bethânia. Mas a baiana é forte, não é preciso que nos preocupemos. O alvo da discussão tem se voltado cada vez mais para onde reside verdadeiramente o problema, ou seja, no maior mecanismo de financiamento cultural em operação no país, a famigerada lei Rouanet – ou ERROuanet, para os íntimos.

Quero dizer que a discussão talvez tenha mesmo focado questões erradas. O projeto nem chegou a captar recursos, tampouco se trata do primeiro projeto milionário em que uma única pessoa se remunera com mais da metade do orçamento total. Mas que o tema sempre foi da melhor qualidade, ah, isso foi, viu E por quê? Ah, por que há perguntas que precisam sair dos gabinetes e ganhar as ruas, Fernandinho

O que justifica um incentivo fiscal? Maria Bethânia ou Caetano Veloso precisam mesmo de um INCENTIVO para realizar qualquer coisa, seja a divulgação do disco Zii e Ziê ou o blog vídeo-poético? Eu posso estar errado – e não podemos todos? -, mas acredito que não, eles não precisam. Isso porque o valor comercial destes dois artistas permite que ambos se viabilizem através do mercado. Você não gostaria de associar sua marca a esses moços? Tia Nena também queria. Rodolfo queria, Felipinho do quatrocentos e quatro, o pessoal do clube de bocha… aqui na rua não teve um que dissesse o contrário. Seu Armando só ponderou o seguinte: “melhor, só se fosse de graça” – e olha que é possível, vamos falar disso logo mais. Além de eles não precisarem de incentivo, o aporte de recursos públicos não deveria ter como princípio promover o acúmulo de capital por quem quer que seja. Renúncias fiscais, assim como recursos injetados diretamente pelo governo, têm um teto, não são infinitos. Pelo menos não até onde eu sei. Ou seja, a gestão dos recursos – haja vista o corte orçamentário de 40% que o Ministério da Cultura acaba de sofrer – infelizmente, continua a lidar com a questão da escassez, em vários âmbitos, e consequentemente, com confrontos de extinção. É então função do Estado desenvolver políticas públicas, entre elas algumas de cultura, pra dar suporte, ativar e salvar da extinção, formas de vida sem potencial comercial que as garantam vivas, e ainda assim possuidoras de valor e interesse público. Sim, por que é de interesse de todos que a vida não se submeta ao valor comercial, que estes dois termos não se tornem sinônimos, sob risco de um colapso, que há muito se processa na entranha capitalista, acontecer.

A Lei Rouanet, no entanto, promove hoje a lógica oposta: são beneficiados quase que exclusivamente os agentes de maior potencial comercial. O “carimbo” do ministério que autoriza projetos a captarem recursos via Lei Rouanet, não garante a realização do projeto. Os projetos devem ainda buscar patrocinadores interessados em injetar os valores autorizados, decisão que se tornou responsabilidade, quase exclusiva, dos setores de marketing das empresas. A lógica é a seguinte: minha empresa investe num show, que deverá carregar sempre que possível o logotipo da minha empresa estampado no maior número possível de espaços, só que eu desconto esse valor (que eu já pagaria) do imposto de renda devido pela empresa. O que isso quer dizer? Que o “produto cultural” é um efeito colateral de uma ação de promoção da minha empresa, não se trata de uma operação que visa à saúde da cultura. E, olha que inteligente, é uma ação promocional paga pelo governo, ou seja, por nós. Agora, se eu for mesmo um bom administrador, eu vou fazer essa ação ser a mais bem sucedida possível. Vou associar minha marca ao “produto” de maior alcance e maior potencial comercial possível, e sem culpa, posto que, em meu contrato social, eu assumo que o objetivo de minha empresa é o lucro, não é socorrer a cultura nacional. Lembra do Seu Armando? Então, ele ficou feliz da vida. Perguntei pra ele se ele não achava melhor apoiar novos artistas. “Eu hein, isso é trabalho do governo!”. Nunca mais vi Seu Armando. Acho que ficou rico e se mudou pro condomínio do Caetano.

Mas falemos especificamente do blog da Bethânia. No item “justificativa” do que foi divulgado como sendo, supostamente, o projeto original enviado ao MinC, os proponentes de O mundo precisa de poesia declaram que o canal GNT, da GloboSat, manifestou interesse em veicular as pílulas poéticas em sua grade (barulho de caixa registradora). Isso, somado às infinitas brechas publicitárias que existem em qualquer site, nos permite especular a respeito das cifras além-Rouanet que o blog pode alcançar, mesmo com acesso gratuito. E aí você me pergunta: essa orientação está a serviço da arte e da cultura? A serviço do artista? (Ih, tá frio…) Quem e quantos, na perspectiva do ESTADO, devem ser incentivados, sob risco de se tornarem seres impossíveis, espécies em extinção? Num país em que o salário mínimo não chega a R$600, devemos invalidar os protestos e achar normal alguém ganhar R$50.000,00 mensais (uma das rubricas do orçamento do projeto bethânio)? E não esqueçamos: isso considerando só a parte que o governo coloca na mão do moço ou moça diretamente, ou seja, sem contar o que será obtido em comercialização de espaços publicitários. Isso não é proporcionar através de dinheiro meu e seu o acúmulo irrefreado de bens e capital por um número ínfimo de pessoas?

Mas calma, larga esse estilingue, há também outras camadas a considerar. Juca Ferreira, quando questionado sobre o critério que utilizou para autorizar a captação para os shows de Zii e Ziê, de Caetano, nos lembrou que a democratização do acesso aos shows de um artista da qualidade de Caetano Veloso também é de interesse público. Na ocasião, os produtores de Caetano teriam declarado que, com a entrada de recursos oriundos da Lei Rouanet, o valor dos ingressos caiu de cerca de R$200 (duzentos reais) para R$40 (quarenta reais), transformando a série de shows no que seria considerada uma “temporada popular”. Apesar de bem-intencionada, a lógica democratizante utilizada continua não desfazendo a engrenagem do acúmulo, dá validade às mega-remunerações, às fraturas e à segmentação social. Sim, é cafona mesmo. Algo ainda ancorado numa tradição romântica em que o artista é um ente supremo, responsável por uma comunicação visceral e misteriosa entre nós e o metafísico. Soou muito distante? Pense então numa celebridade excêntrica com todas as suas duzentas exigências, aquela que não sai de casa desde que estejam aguardando por ela no camarim suas noventa toalhas felpudas, treze garrafas de La Bourgeoisie , frutas fluorescentes do Cairo e trinta seguranças acrobatas. O fato é que a crença de que o artista é um semideus enviado do paraíso está sob franco ataque há mais de um século, no mínimo desde os manifestos situacionistas e o surgimento da noção de vanguarda – que também é velha, sem problema. Entre os críticos desse dispositivo de idolatria encontramos inclusive membros da classe artística, que não desejam mais enlouquecer, vítimas de um delírio coletivo.

Tá. Não fossem os salários astronômicos, a democratização do acesso é um argumento relevante? Acho até que sim, apesar de acreditar que um ingresso de R$40 (quarenta reais) não chega a realmente ampliar o espectro de acesso para além da classe média. Talvez o vale-cultura seja um caminho intermediário mais interessante para esse tipo de caso, uma espécie de crédito individual para ser gasto pelo cidadão em bens culturais como bem quiser. Dessa maneira, o Ministério Hollandês compartilharia com o cidadão – que afinal, é o beneficiário – a responsabilidade e o direito de administração de recursos públicos que tem como fim o seu próprio acesso à cultura. Caberia ao cidadão-consumidor, finalmente, validar ou não um salário astronômico pago por ele, assim como se tornaria mais claro para ele o distanciamento que o “pop-star” opta por ter em relação a uma parte de seu público.

Então é isso, um artista consagrado e bem sucedido no mercado não pode ser beneficiado por recursos estatais, a não ser que pela soma de atitudes individuais como no caso do vale-cultura? Enquanto tivermos que nos debater com a escassez de recursos, outra opção se justificaria apenas em casos remotos, como por exemplo, quando um artista deseja se lançar em empreitadas sem apelo comercial – como projetos experimentais, arriscados demais para o mercado – e após tentar e não conseguir viabilizá-las por outros meios. Ainda nesse caso, a remuneração através de recursos públicos deveria respeitar um teto, ainda que seja necessário para o artista ter que escolher entre este trabalho ou priorizar um maior lucro proporcionado pelo mercado. Sim, é do interesse do público que este artista não seja um refém do mercado e possa ter maior liberdade, mas não impondo aos cofres públicos que estes se tornem o mercado.

Isso quer dizer que o Estado deve abandonar a lógica meritocrática e se tornar um grande colo de mãe? Não. Newton Cannito, em um ótimo texto sobre o assunto (http://doutorcaneta.blogspot.com/2011/03/maria-bethania-e-os-consagrados-pelo.html), nos chama atenção para o perigo de adiarmos a conciliação entre democracia e meritocracia. Segundo ele, enquanto novos criadores não conseguirem atingir um nível de “qualidade” que permita que eles participem do mercado e que se estabeleçam, eles continuarão dependentes dos recursos estatais – o que também não seria responsável ou mesmo sustentável durante muito tempo. É preciso que a roda gire e outras pessoas sejam beneficiadas pelas políticas públicas. E, de preferência, durante apenas uma etapa de seu processo de emancipação. No entanto, pensar sobre termos subjetivos como qualidade e suas relações com o consumo, nos levará, necessariamente, a discutir os oligopólios midiáticos e a colonização do desejo do consumidor por poucos veículos de comunicação de massa. Todos sabemos que a qualidade da obra nem sempre determina seu potencial de sustentabilidade comercial. Mas essa questão fica para outro momento, assim como a reforma da lei dos direitos autorais e o porquê de Anna de Hollanda ser o maior erro do governo Dilma. Voltemos à questão Rouanet.

Mais acima, falamos sobre o vale-cultura, que coloca sob responsabilidade do indivíduo a aplicação dos recursos públicos com fins de democratização do acesso a bens culturais para ele próprio. Mas nem só de intermediação do Estado vive o artista, e menos ainda, o consumo cultural do público. Se é preciso estar “atento e forte”, não negligenciando os rumos dos onipresentes impostos pagos por todos nós diariamente, é necessário também que descubramos maneiras de agir agora, sem aguardar o santo dia em que a máquina irá atingir coerência. E por falar em “empoderar” o indivíduo sobre os rumos do que se realiza ou não, uma das boas novas que o mundo contemporâneo e a internet nos apresentaram é o que se tem chamado de crowdfunding. Traduzindo para o português seria algo como “financiamento pela multidão”. A ideia é que várias pessoas contribuam, com pequenas quantias, de maneira colaborativa, para viabilizar uma idéia, um negócio, ou um projeto. Esta maneira tem revolucionado os modos de fazer mundo afora e reduzido as distorções sofridas na intermediação pouco porosa entre criadores e público. Nessa lógica, é o público que passa a decidir o que é relevante e o que será realizado.

Plataformas gringas como o Kickstarter e nacionais como o Queremos já movimentam cifras expressivas, e talvez anunciem uma transformação radical no modelo de negócios do novo milênio. A maioria das movimentações de grana por esta via não pressupõe doações. Implicam retornos, recompensas de ordens diversas, que vão desde experiências subjetivas até exemplares ou ingressos do produto cultural gerado. Recentemente, no Espaço Cultural Sérgio Porto, o espetáculo “Otro”, de Enrique Diaz e Cristina Moura, realizou a primeira temporada teatral financiada colaborativamente de que tive notícias e pude celebrar (é provável que tenham havido outras muito antes e seja eu o ignorante, não leve isso tão a sério). Após uma série de viagens internacionais, os artistas desejavam encerrar sua primeira série de apresentações em solo carioca, mas não tinham patrocínio. Resolveram então orçar os custos de um mês de exibição e disponibilizar um número limitado de cotas – cotas de pequeno valor, que pudessem cobrir os custos levantados. Quem as comprou se tornou uma espécie de micro-patrocinador, teve seu nome inserido num impresso com a lista de financiadores e recebeu um número de convites para a temporada – que ao que parece, realizou-se de forma muito bem sucedida.

O que será que o Estado pode aprender com isso? No mínimo, a desenvolver seu processo de “empoderamento” popular. Hoje, mesmo já sendo possível que pessoas físicas financiem projetos através da lei Rouanet e descontem o repasse de seu imposto de renda, a burocracia e complexidade do processo impedem que o mecanismo se popularize. Caso consigamos vencer essa herança maligna e simplifiquemos esses trâmites, é bem possível que a integração bem sucedida entre mecanismos de renúncia fiscal e sistemas que tenham como base o crowdfunding opere uma transformação importante no sistema de produção cultural do país.

Há quem diga que estamos num caminho sem volta, e que isso é mais amplo, bem mais amplo, que um simples debate ministerial. Talvez estejamos mesmo caminhando rumo a uma noção de estado que será, cada vez mais, um reflexo do desejo da multidão. Se a ideia é representar o maior número de pessoas, desenvolveremos dispositivos de consulta mais regulares, através dos quais votaremos não só em pessoas, mas também em idéias e ações de governo. Descentralizar o poder não é anarquia, como se costuma vender por aí. Talvez seja justamente nos aproximar do que o termo “democracia” propõe e quer dizer. Ao invés de poucos regerem muitos, ao invés de verticalizar o poder, horizontalizá-lo. Talvez estejamos mesmo prestes a ver uma revolução política radical: ao invés de carteira de identidade ou título de eleitor, um perfil-cidadão numa espécie de Facebook Federal. Uma série de propostas é publicada num mural coletivo. Depois de um certo período, cada autor considera os “comentários” que recebeu e reapresenta sua idéia. No fim da apuração, aquelas que acumularam mais “curtidas” se tornam política de Governo. Será? Faz algum sentido pra mim.

@patricksampaio

Patrick Sampaio é pesquisador da cena contemporânea, performador e produtor multidisciplinar. Colaboraram para esse texto conversas com Bia Lopes, Gabriela Serfaty, Rodrigo Lopes, Rodrigo Maia, Thiago Maia, e os debates articulados na rede Brecha Coletivo.

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