Identidade Shakespeare

Crítica da peça A comédia dos erros

10 de fevereiro de 2009 Críticas

Sofia Salvatori grávida. Até aí nada. Mulheres engravidam. No entanto, encontrá-la assim atuando no espetáculo A comédia dos erros me fez pensar no que significa, mais uma vez, ser atriz. Afinal, quando o espetáculo estreou em abril de 2008, na comemoração dos 20 anos da Cia Stravaganza, gerar uma nova vida não estava nos seus planos. Assim surgiram reflexões sobre a dinâmica da existência e as relações familiares, o que, aliás, são também assuntos da peça. Vencedora da terceira edição do Prêmio Braskem Em Cena, Comédia dos Erros voltou em cartaz no Porto Verão Alegre em curta temporada.

Escrita por William Shakespeare, foi atualizada pela direção de Adriane Mottola que utilizou a tradução de Bárbara Heliodora e manteve a peça em versos. Considero este um dos pontos fortes da peça. Os atores apropriaram-se de cada palavra, o que faz com que o público não estranhe a poesia dramática de 500 anos atrás. Foi uma escolha arriscada tendo em vista que sua proposta era contemporaneizar o autor, o que a diretora conseguiu sem exageros. O contraste pode parecer equívoco para alguns e tornar ainda mais interessante para outros. Não importa. A atuação do elenco vale a pena.

O espetáculo conta a história de dois pares de gêmeos idênticos – os dois Antífolos e seus dois criados Drômios – que foram separados na infância durante um naufrágio e levados a cidades diferentes, cada patrão com seu servidor. Até o reencontro dos irmãos, já adultos, os personagens vivem uma série de confusões de identidade.

Na Comédia de Erros, a ação tem como ambiente principal um mercado público à moda turca no qual o público é espectador e freguês. Convidado a chegar antes do início do espetáculo, o espectador é recebido por atores/mercadores que oferecem seus produtos. O Stravaganza consegue transformar aquele “garajão”, sede do grupo em um local aconchegante e receptivo, principalmente, em uma noite de verão. A idéia de um mercado não só se insere, completamente, ao conteúdo da peça, como serve de atrativo para o público. Percebe-se um cuidado nos detalhes de todos os elementos colocados em cena. Assim, mesmo antes, dos atores começarem a contar a história, já conseguimos constatar que não é preciso um palco italiano e poltronas forradas para que o público se sinta confortável. A boa luz de Fernando Ôchoa conduz nosso olhar mesmo em um espaço tão grande como do Stravaganza.

A abertura do espetáculo ocorre com a figura de um ator que até então havia surgido totalmente maquiado, cílios postiços, roupas extravagantes. Lauro Ramalho vai retirando suas vestes aos olhos do público para dizer um texto do cineasta Win Wenders. Traz para dentro da história o público com sua dicção exata, seu “timing” perfeito. Olhando muitos de nós nos olhos, senta-se em sua cadeira e afirma: “somos o que somos, vivemos onde vivemos…” Logo depois, começa a história que irá tratar sobre crise de identidade.

Em sua maioria, as pessoas sorriem o que, aliás, costuma ser a reação gaúcha em comédias, mas, também, há aqueles que gargalham e isso salienta mais uma vez a questão da participação do espectador no espetáculo apresentado no, hoje, chamado espaço cultural multiuso da companhia, aberto à comunidade e que se transforma a cada encenação.

Ver a encenação desta comédia de Shakespeare confirma mais uma vez a razão da sua popularidade. Escrevia uma história como ninguém. Mas, o público, hoje, sabe que isso não é suficiente para fazer um bom espetáculo. São muitos componentes, sendo que o destaque fica para o talento dos atores e a “inteireza” de seus personagens. São convincentes e divertidos.  Surgem comentários do público sobre a semelhança dos atores que faziam os gêmeos. Na vida real, em suas próprias identidades, eles não se parecem. Ou seja, isso apenas confirma a força de seus personagens, a interpretação convincente de Rodrigo Mello, Duda Cardoso e Carlos Alexandre e Fernando Kike Barbosa que induz o público exatamente à confusão que desejava aquele menino, o Shakespeare (como diz outro diretor de cinema, Sergio Silva). O figurino de Coca Serpa colabora e muito.

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