Recortes

Crítica da peça Desabotoa minha gola

10 de dezembro de 2008 Críticas
Atriz: Ludmila Rosa. Foto: divulgação.

Desde outubro deste ano, os grupos Coletivo Improviso e Pequena Orquestra organizam a Operação Orquestra Improviso (www.operacaorquestraimproviso.blogspot.com), ocupação do Teatro Gláucio Gill, com uma programação variada de teatro e dança, com apresentações de cenas curtas, performances, oficinas e espetáculos que fazem parte do repertório de integrantes desses grupos, como é o caso do solo Desabotoa minha gola, com Ludmila Rosa, inspirado na vida de Patrícia Galvão, a Pagu, com direção de Haroldo Rego.

Vejo esse trabalho como mais um exemplo de uma série de bons solos que têm aparecido no teatro carioca ultimamente, como Estação terminal com a atriz Tuca Moraes; Ele precisa começar, de Felipe Rocha; o não tão recente A sobrancelha é o bigode do olho, com Márcio Vito; e Ingrid, com Carolina Virgüez, espetáculo que tem uma aproximação com este sobre Pagu. Em Ingrid, Carolina Virgüez não tenta dar conta da personagem Ingrid Betancourt, assim como, em Desabotoa minha gola, Ludmila Rosa também não se propõe a fazer a personagem Patrícia Galvão. Parece que Ludmila, assim como Carolina com relação a Ingrid, está buscando algo de sua própria identidade na personagem que escolheu pesquisar. Ingrid na Colombia de hoje, Pagu no Brasil de algumas décadas atrás: as duas personalidades serviram para as duas atrizes como ponto de contato com uma herança cultural embaçada, que elas tentam, de algum modo, desvendar. Mas embora as personagens em questão sejam abordadas de forma parecida nas duas peças, os espetáculos são, naturalmente, bastante diferentes na sua estética.

O espetáculo é feito de pequenos quadros, que me pareceram recortes da pesquisa e do processo de trabalho. São recortes de Pagu – não apenas da sua vida e de sua obra, mas principalmente da sua personalidade, do que é resgatável, visível, hoje. Esses recortes se materializam na visualidade do espetáculo, como na iluminação de Tomás Ribas, que imprime belos enquadramentos na cenografia simples do diretor. Em determinado momento, a atriz diz que “queria fazer um espetáculo que tivesse uma esquina, uma esquina qualquer, um lugar de ninguém, uma encruzilhada.” Uma esquina é, também, um recorte de um cenário urbano possível em qualquer lugar: um recorte abstrato, indeterminado, uma tela em branco.

No cenário vemos duas paredes brancas que se encontram, formando um ângulo reto, uma esquina, e uma mesa que é aproveitada de maneira bem interessante. De início, a atriz puxa a mesa para dentro da cena, traçando, com esse movimento, uma diagonal que divide o palco, produzindo um ruído contínuo que se sobrepõe à sua fala. A mesa também é um elemento que produz recortes no corpo da atriz, escondendo e revelando ao mesmo tempo, como se esse móvel fizesse as vezes de um compartimento vazado, uma porta entreaberta ou uma janela ao longe. A atriz dança com a mesa, mas não só literalmente. Há um jogo de movimento com esse elemento que não é só corporal – a mesa parece ser parte da dramaturgia, da organização das idéias do espetáculo. Mas também proporciona instantes de grande beleza visual, como na cena em que a mesa fica apoiada na quina da parede, ou quando está suspensa nas costas da atriz.

Desabotoa minha gola parece propor um desvendamento da vida e da obra de Pagu. Seria possível dizer: “não se trata de um resgate histórico”. Mas penso que talvez seja o caso de dizer, sim, que temos ali um resgate histórico – não um resgate de fatos, de nomes e datas – mas um outro tipo de resgate histórico, o das subjetividades, dos questionamentos íntimos, dos rastros de pensamentos deixados por aquela mulher. Não um resgate que fixa e registra seu objeto, mas que o coloca em risco, que o apresenta com falhas, misturado com o suporte. Personagem e atriz estão emaranhadas. Nem sempre se identifica na cena o que é fala de uma ou da outra, e às vezes parece que a fala pode ser de qualquer uma das duas. Como a última frase dita por Pagu, “desabotoa-me essa gola”, que virou, no título a peça, “desabotoa minha gola”, uma frase processada, que era de uma e virou de outra. Como as fotografias que a atriz mostra para o público: ela mostra um lado e diz um nome, depois mostra o retrato que está no verso e diz o outro nome, mas são todas Pagu. Com a repetição e a interferência de outras falas nesse processo, os nomes se confundem com os retratos e acabamos percebendo um jogo possível, de que ela esteja fazendo esse movimento com ela mesma: aqui Pagu, aqui Ludmila, aqui Pagu, aqui Ludmila, e assim até que a gente se confunda entre as duas.

Ouvimos os anseios da personagem e os anseios da atriz, relatos da personagem e relatos da atriz. E vemos, pelas escolhas que foram feitas na dramaturgia de Ludmila Rosa e Haroldo Rego, como esses artistas se aproximam desse objeto histórico, o que lhes interessa pesquisar e o que lhes interessa transmitir, como podem explorar formas distintas de dizer o que pensam. Esse processo de criação do texto da peça, essa seleção de depoimentos subjetivos, mais que relatos de fatos, parece revelar o que eles pensam sobre história, sobre memória e identidade cultural. Fazemos recortes para preservar e para resgatar. Um recorte é um movimento contínuo.

Recortes em vídeo: Desabotoa minha gola

Vol. I, nº 10, dezembro de 2008

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