Os encartes de cultura e as matérias pagas dos jornais, os cinéfilos de monografias acadêmicas e os releases de distribuidoras de filmes podem até dizer o que quiserem, até porque muitos dos que dizem o que querem não querem o que dizem, mas – aqui para nós – essa leitura de que Lars von Trier, em Dogville, está contando uma história sobre a crueldade humana é, no mínimo, uma tremenda miopia por reduzir a idéia de humano a partir de estreitos conceitos ocidentais e ocidentalizados do modo acidentalmente cristão de atribuir sentido ao mundo, se é que existe alguma eficácia nessa possibilidade. Aliás, ficaria até interessante aqui, em Dogville, brincar com o anagrama e inverter as letras de Dog para God, considerando que o Dog (cão) do filme se chama Moisés (em hebreu, Mosché), o mesmo que apresenta aos humanos a tábua dos 10 mandamentos da lei de God (deus). Por uma visada bastante irônica, também podemos afirmar que aqui, o “nosso” Moisés, também nos ofereça como mandamentos os 9 capítulos fornecidos no filme como uma anunciação, através de uma espécie de álbum seriado apresentando os temas das cenas que se seguem, deixando o 10º para ser escrito pelo próprio espectador.