Intimidade e imersão

Crítica da peça Jumbo – eu visito a tua ausência, do grupo O baú da baronesa

8 de junho de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

O grupo O baú da baronesa apresentou no espaço da Companhia dos Atores, no bairro da Lapa, o espetáculo Jumbo – eu visto a tua ausência, uma mostragem de repercussões afetivas em mulheres de detentos. Neste universo, o termo jumbo significa uma espécie de pacote que as mulheres preparam para seus pares e que aglutina coisas heterogêneas, como comidas e objetos de uso e de higiene pessoal. O texto do programa se refere a um “pacote de cuidados” que a dramaturgia e a encenação tratam de materializar por meio de escolhas que expõem intimidades das personagens, momentos particulares com seus entes queridos. Esta mesma intenção se projeta no modo confessionário em que as personagens se apresentam ao público, que fica alocado no lugar daquele que está na prisão, e que é o visitado.

A estrutura de encenação se assemelha à noção deste “jumbo” formado por heterogêneos, mesmo que mostre tendência para criar uma unidade. A cenografia e a direção de arte de Karla Pê organizaram o espaço em uma semi-arena, o que designa a intenção de uma mostragem. No palco está um conjunto horizontal, formado por pequenas cortinas individuais que aludem aos espaços restritos dos presos e mais propriamente aos de visita íntima e que, ao mesmo tempo, se harmoniza com a proposta de exibição. O lugar que a abertura das cortinas revela é indeterminado, não tem caracteres específicos e dá a sensação de uma máquina parada, disfuncional, por que o que se mostra é a estrutura mesma do objeto cenográfico. Por mais que se deseje uma narrativa material do interior desses pequenos espaços, ela nos é negada. Este princípio de negação, a meu ver, é uma qualidade poética que vai ao encontro da impressão de uma intimidade esfacelada.

A dramaturgia de Cilene Guedes privilegia justamente o aspecto íntimo das relações entre os gêneros e a carga afetiva de ter uma pessoa amada detida em uma penitenciária. Mostra fragmentos da vida de sete mulheres envolvidas com tal situação – seus antecedentes e seus desdobramentos. Identifica perfis femininos, não sem alguma problematização, o que apoia uma recepção mais livre sobre o que é proposto em cena. Sobretudo, atualiza para a recepção possíveis efeitos de amores incondicionais.

A direção de Joana Lebreiro está em conjugação com o que parece ser a intenção da dramaturgia. Neste sentido, pode-se perceber um apurado trabalho de composição das personagens em uma atuação que se define pela linha de identificação. O programa do espetáculo nos oferece as referências de textos, livros e documentários que inspiraram o processo artístico de criação. Assim, a referência a Eduardo Coutinho, com proveito da imersão na noção de personagem, foi uma escolha que ainda evidencia o local de contracampo, ou seja, o outro lado da tela, seja a da televisão ou a do cinema, criando uma instância, um ambiente, um lugar de convergência de modos de recepção conjugados com diferentes mídias.

Sem desejar ver o que não está lá, mas podendo criar um imaginário para a dialética que Coutinho estabelece entre ficção e realidade, a opção pela intensidade na linha imersiva da atuação em Jumbo torna os sentidos mais restritos no que diz respeito ao que está apontado como intenção. Outra restrição pode ser percebida pelo modo repetido das mostragens, quase sem surpresas, sem intempestivos, obedecendo a uma cadência que o espectador já reconhece antes da metade do espetáculo. O inusitado aparece nas falas, o que indica a intenção mencionada acima. Existe um possível percurso de aproximação e de distanciamento, na medida em que a encenação entremeia discursos pontuais sobre a situação carcerária no país, revelando o lugar teatral, mas que não é suficientemente ordenado como poética para causar um efeito de tensão para a representação que predomina na cena. As ações das atrizes nestes momentos tendem a ser marcadas por alguma previsibilidade que acaba dando uma noção de unidade no que deveria apontar a diversidade, para seguir uma ideia de real.

Acredito que seja o aspecto panorâmico, ou de painel textual que não oferece tal oportunidade para uma maior dimensão dialética da cena. Considero pertinente apontar tal fragilidade por que se trata de um espetáculo que mostra a seriedade e o desejo de realização do trabalho de arte do grupo O baú da baronesa. Constituído por atrizes recém-formadas na escola de teatro, uma das mais conhecidas da cidade, o grupo não se deteve em seu primeiro projeto na tendência geral por autobiografismos. Não que não se possa realizar um evento de arte com tal mote, ou que já esteja desgastado e que não possa oferecer inventivas. Mas o fato de que fizeram uma escolha de pesquisa, de integração em um universo bastante distinto da experiência pessoal das atrizes, dá a ver uma intenção política – uma tomada de posição artística para tratamento de uma questão.

Foto: Divulgação.

A atuação mostra apuro na construção de perfis diferenciados vividos pelas atrizes Cilene Guedes, Fernanda Bastos, Fernanda Huffel, Heloisa Lazzari, Letícia Milena, Naiana Borges e Nina Pamplona. Todas exprimem corporalmente seus personagens, o que significa aqui uma interação entre corpos e falas que propiciam a crença em suas performances imersivas, cujo efeito transita entre a surpresa, sensação artística, ou seja, com repercussão estética e um desconforto que não pode ser inteiramente nomeado. A fragmentação dos espaços íntimos também está conferida pela segmentação das diferentes histórias-faladas que acontecem ao mesmo tempo e, assim, não se tem a escuta do todo, a não ser como um rumor, talvez o rumor do acúmulo de vozes destas mulheres invisíveis, do qual as atrizes mostram lampejos. Mesmo tendo uma atriz à nossa frente falando diretamente para nós, além do murmúrio geral, sofremos o vazamento de outras vozes que estão ao nosso lado, o que revela um valor para o fortuito, o valor de uma dramaturgia que também se constrói pelo acaso de uma ou outra palavra escutada, que privilegia aquilo que é da ordem do invisível em uma medida importante.

Os vídeos dirigidos por Thiago Lima criam uma atmosfera visual momentânea para a noção de heterogeneidade que traz sentidos para o espetáculo, além de nos posicionar, em uma espécie de prólogo, para o material afetivo de Jumbo.

A meu ver, Jumbo poderia se valer de um tempo mais enxuto, ou dito de outro modo, que a direção pudesse definir com mais precisão algumas arestas. Trata-se de um trabalho elaborado com força energética das atuações, com o entendimento da operação de captação de intimidades e de mostragem, com a noção de apuro e experiência pautada na imersão e a singularidade de estabelecer uma perspectiva política por meio dos afetos.

Este texto foi escrito com a colaboração de Mariana Barcelos e Paulo Mattos.

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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