Deus e o diabo na terra do sol – Em busca de uma experiência total

Texto sobre o processo de criação do espetáculo de Jefferson Almeida

29 de janeiro de 2013 Processos
Foto: Divulgação.

“O difícil é ser total.”
Hélio Oiticica

Quando a Cia. Provisória surgiu, em 2008, na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), tinha como horizonte de estudo e pesquisa cênica o teatro musical brasileiro e suas variáveis, já que era possível considerar, por exemplo, o Show Opinião (1964) como uma possibilidade de material prático desse estudo. Por fim, Calabar – o elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra, foi a peça escolhida para o início dos trabalhos.

Depois de seis meses de ensaios, aulas de canto, preparação vocal e corporal, Calabar estreou, e foi muito bem recebida pelo público e pela crítica, voltando a atenção da academia para o estudo do musical (que já vinha despertando o interesse dos discentes) e, sobretudo, pelo resultado da encenação que devolvia o teatro ao gênero, colocando a música como recurso da linguagem em vez de motivo para a cena, e se aproximando, como gênero, mais do épico do que do próprio musical.

Foi a percepção dessa aproximação com o teatro épico que, em certa medida, mudou os rumos do estudo da Cia., fazendo-nos perceber que, mais do que o musical (brasileiro), nós gostaríamos de descobrir, investigando praticamente, como se dá a relação música e cena (entendendo “cena” como o conjunto de elementos que a compõe: texto, movimentações, direcionamentos, etc), buscando uma espécie de simbiose entre essas duas linguagens que estão irmanadas desde sempre.

Imbuídos dessa nova diretriz, chegamos, em março de 2011, à sala de ensaio para iniciar o trabalho de construção da nova peça da Cia. O texto escolhido para dar conta dessa nova fase da pesquisa foi o antológico Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, cujo processo é o objeto deste artigo. Porém, antes de penetrar nas densas paragens de um processo criativo, vale, sinteticamente, notar os porquês dessa escolha, em certa medida, improvável.

“(…) pois estes roteiros podem ser refilmados + televisados + montados em teatro e ainda funcionam como romances ou novelas.”

Glauber Rocha, em carta a Carlos Augusto Calil.

Está no depoimento do embaixador Arnaldo Carrilho, nos extras do DVD do box Glauber Rocha, da coleção Fase, lançado pela Rio Filmes, uma espécie de pista do que nós percebíamos na famosa obra de Glauber. Ele diz que “Deus e o diabo na terra do sol é um filme, essencialmente, de mise en scène. (…) o filme contém um espetáculo dentro dele. É narrado como se fosse literatura de cordel, mas uma literatura de cordel ribombante, quer dizer, no fundo, Deus e o diabo na terra do sol é uma ópera.”

As opções sonoras de Glauber em Deus e o diabo… funcionam como um comentário explícito. Em lugar da “música de fundo” o cineasta abusa de escolhas musicais com forte carga semântica, dialogando intensamente com a estética da obra. Na trilha do filme, Glauber Rocha coloca, como em dois extremos de uma corda, o romance violado com letra do mesmo e música de Sérgio Ricardo e a música de Villa-Lobos. A parte da trilha composta por Sérgio e Glauber reforça a noção de identidade sertaneja, com a história narrada pelo cancioneiro do Nordeste, instaurando um caráter de concretude à obra. Porém, há também a força arrebatadora da música de Villa-Lobos. Essa dicotomia, essas informações aparentemente contrárias tensionando esta invisível corda com a qual Glauber amarra, à sua maneira, a história, é um dos sinais da estética aglutinadora e desconcertante do Cinema Novo.

Que Glauber trabalhou a partir do teatro épico para a construção de Deus e o diabo… não é nenhuma novidade. Começávamos, então, a entender em que sentindo caminharíamos: rumo à música e à cena épica, onde a música tem grande funcionalidade, para além de criar momentos de puro lirismo. A música serve ao distanciamento proposto por Brecht quando comenta uma cena, quando sintetiza e/ou substitui a ação ou quando reforça certo sentido já denotado pela cena. Temos, então, que o principal pilar do processo estava definido: trabalharíamos a partir e em busca de uma encenação com escopo épico.

Com este estado de coisas flutuando no nosso horizonte, nos reunimos – Tamires Nascimento (minha assistente, produtora e atriz da peça) e eu – com o volume Roteiros do terceyro mundo, organizado por Orlando Senna, que veio parar na minha biblioteca graças a um lance do destino e à feirinha de livros do Largo da Carioca. O nosso primeiro desafio era, de posse de muitas audiências do filme e de inúmeras conversas, transformar o roteiro de Deus e o diabo… em um possível texto de teatro. Desde sempre, nós refutamos a ideia de transcrever para o palco, o filme, afinal, este seria um trabalho baldado; só valeria esse esforço, pra nós, se pudéssemos escrever de novo esta obra dramatúrgica, neste outro suporte – o teatro – sem, contudo, deixar escapar aquelas potentes imagens capturadas pela inquieta câmera na mão. Em vinte e quatro horas estava pronto o primeiro tratamento do texto que era uma espécie de translação do roteiro já considerando as rubricas e descrições de cena que virariam narração (ainda sem divisão) e a alocação de quase todas as músicas da trilha original.

A partir de então, o filme já não era mais nosso ponto de referência; começaríamos, agora, o trabalho de elaboração da dramaturgia a ser utilizada na nossa montagem e dos primeiros apontamentos para a realização cênica daquele material. O segundo tratamento do texto estava iniciado, e era, então, momento de encontrar os primeiros buracos a serem preenchidos e/ou lugares onde, supomos, deveria ter uma grota. Para essas escavações e preenchimentos, tínhamos à mão os outros sete Roteiros do terceyro mundo (Barravento, de 1962; Terra em transe, de 1967; O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de 1969; O leão de sete cabeças, de 1970; Cabezas cortadas, de 1970; Claro, de 1975; e, A idade da Terra, de 1980), além dos roteiros não filmados (A ira de Deus (Corisco), de 1959, primeiro tratamento de Deus e o diabo na terra do sol; Barravento (primeiro tratamento), de 1961; Terra em transe (primeiro tratamento), de 1965; Antônio das Mortes, de 1967, primeiro tratamento de O dragão da maldade contra o santo guerreiro; e, Anabaziz – O primeiro dia do século, de 1977, primeiro tratamento de A idade da Terra). Em mais dois dias de trabalho, estava pronto o segundo tratamento. Nele, já estavam conformadas todas as músicas da trilha original, bem como todas as citações pinçadas dos outros roteiros, ou melhor, de três deles (A ira de Deus (Corisco), O dragão da maldade contra o santo guerreiro e Terra em transe) e uma criação: a personagem FIGURA. Estávamos prontos para a sala de ensaios.

Depois da primeira leitura, dividi nossos futuros três meses de ensaios em três momentos sequenciais, os três referindo-se, unicamente, à construção da peça-peça. O trabalho musical era desenvolvido paralelamente, durante todo o processo que se organizou da seguinte maneira: 1) laboratórios; 2) marcação; 3) ensaios. Vamos às fases!

1 – Laboratórios

Dedicamos a essa fase o primeiro mês de trabalho que contava com três encontros semanais, com três ou quatro horas de duração. Para a elaboração das proposições a serem feitos ao elenco separei duas correntes que me pareciam puxar a dramaturgia no que tangia as relações entre as personagens e, por conseguinte, as relações políticas colocadas em cena quase alegoricamente, por Glauber. Essas correntes eram as seguintes: a) as relações de fé; b) as relações de poder.

Como é comum, no trabalho da Cia., os encontros eram iniciados com um sequência de exercícios de alongamento e aquecimento físicos seguidos de jogos de percepção rítmica e de atenção, objetivando, além de um contato primário com a questão musical, trazer os atores para um aqui-e-agora que possibilitasse a realização dos jogos que se davam na segunda parte dos encontros.

Ainda sem utilizarmos as personagens para definir as relações, experimentamos, em cerca de doze encontros, alguns jogos coletivos de improvisação conduzida que davam conta de trazer para a experiência do corpo algumas vivências que só conhecíamos dos livros, dos filmes e de ouvir contar.

O momento final do encontro, que durava cerca de uma hora, era dedicado ao debate do tema do dia, apresentação de materiais (textos, objetos, imagens) levados pelos atores e discussão de como a experiência ali vivenciada poderia ser alocada em cena.

2 – Marcações

Depois das experiências laboratoriais, com uma série de anotações, me dediquei ao trabalho solitário de desenhar os mapas da peça. Quando me coloquei, pela primeira vez, à frente de um processo de montagem (Mar morto, em 2007), não sabia muito bem como organizar aquele paiol de informações de maneira a se conformarem em cena com significado, e foram esses mapas que me orientaram na condução do processo a partir da criação das imagens que a cena me proporcionava. Uso-os até hoje. Claro que, de lá pra cá, eles foram sendo ressignificados com a apreensão e o aclaramento da maneira com a qual gostaria de me comunicar, esteticamente. Em Calabar, a execução dos mapas já ganhavam um outro sentido e, agora, no Deus e o diabo… a ideia era que esses mapas criassem (revelando) o jogo teatral, que as imagens e os jogos propostos pelos mapas se mostrassem como recurso da linguagem épica.

O segundo mês de trabalho, ainda com três encontros semanais com três horas de duração, foi inteiramente dedicado a transpor esses mapas para a cena. Um trabalho que demandava uma atenção de outra ordem e que precisava, sempre, se referir ao trabalho do mês anterior, ligando-o ao que, agora, estava sendo proposto efetivamente como cena.

O trabalho com os jogos, que iniciava os encontros, continuava com exercícios que exigiam mais do físico e da atenção dos jogadores. A diferença é que, agora, eles se referiam, diretamente, ao que estava sendo trabalhado na execução dos mapas. Paralelamente, seguia o trabalho de preparação vocal, com a Laura Lagub, e começava, efetivamente, o trabalho de direção musical, com o Renato Frazão, que começa a frequentar os ensaios e perceber que tipo de musicalidade brotava do casamento entre a música de Sérgio e Glauber (ainda não sabíamos se o Villa-Lobos estaria presente) e aquela encenação que brotava.

As conversas com os cenógrafos (Lia Farah e Rodrigo Norões) caminhavam à medida que a direção havia optado por uma espacialização e precisava fazer dela uma área de representação – não puramente o lugar onde se representa, mas, um lugar que representa.

No décimo segundo encontro desse segundo mês, estávamos com toda a peça marcada e com a engrenagem entendida e dominada: os sentidos de cada cena, o que os desenhos representavam, e, o que cada cena representava dentro do panorama geral. A espacialização e o cenário (incluindo materiais) estavam resolvidos, e, todas as músicas que eram cantadas também o estavam enquanto formas, arranjos e arranjos vocais. Para a próxima fase do processo – os ensaios – restaram as resoluções de figurinos, maquiagem, iluminação e trilha incidental e a resolução de uma cena: a épica invasão do bando de Corisco ao noivado do filho do Coronel Calazans.

Foto: Divulgação.

3 – Ensaios

Último mês de trabalho: encontros diários de pelo menos três nos quais, depois da sessão de alongamento, aquecimento e jogos coletivos (e aqui, o aquecimento vocal já havia sido elaborado de forma a compor esse momento), nos preparávamos para os “passadões” e para o trabalho de, cada vez mais, aproximar o trabalho dos laboratórios da cena. A presença constante do violão de Renato Frazão e o início da presença do percussionista Nelson Almeida (inquieto!) foram preenchendo os ensaios e a cena com a grande música de Villa-Lobos e com os poderosos ritmos percussivos. Destas presenças e de uma experiência oriunda dos laboratórios, nasceu o maculelê que resolveria a única cena que ficara em aberto, na fase anterior do processo. Este acontecimento denunciava que estávamos próximos ao nosso objetivo primeiro: a simbiose música-cena de forma que, no resultado, perca-se o foco sobre “o que vem primeiro”; estávamos próximos da nossa experiência total.

“Estamos buscando a voz livre, sem tensão desnecessária. A voz livre, que é única, a impressão digital de cada um. A voz livre que vai sozinha para a cabeça ou para o peito (você conduz esse processo e cede a ele). A voz que fala um texto inteligível ao espectador. A voz expressiva, e não “decorada, enfeitada”. A voz inteira, que é produzida dentro e que ressoa fora. E não largada, chutada, empurrada, nem descuidada. Pratiquem, busquem, individualmente. A voz de vocês a vocês pertence.”

E-mail de Laura Lagub, atriz e preparadora vocal.

Em conversa com as figurinistas, Arlete Rua e Thaís Boulenger, concretiza-se o conceito visual da peça, do qual também beberia Rodrigo Reinoso para a criação do visagismo: os materiais deveriam estar em contato; o figurino se aproveitaria da proposição de materiais da cenografia e do visagismo e essa roda-viva de citações entre as áreas seria incorporada à direção musical, etc, fazendo com que todas as partes apontassem para um mesmo Deus e o diabo…

Finalmente, entramos na elaboração da luz, de Yuri Cherem, que, tendo acompanhado o processo e trazendo na bagagem a iluminação do Calabar, também criada por ele, propõe um desenho de luz que, assim como os mapas e todos os outros elementos, revela o teatro.

***

Em 10 de agosto de 2011, estreava, na Sala Glauce Rocha, o nosso Deus e o diabo na terra do sol. Resultado destes três meses de trabalho, ou melhor, resultado destes dois anos de pesquisa, desde o Calabar.

A distância de mais de 1 ano que separa a escrita deste texto da estreia do espetáculo serve para me fazer olhar com certo distanciamento o material cênico que resultou do nosso trabalho e perceber algumas coisas. A mais importante delas, me parece, está ligada compulsoriamente ao espetáculo: a realização da “experiência teatral Deus e o diabo na terra do sol” se dá potencialmente em cena, na fruição entre espectador e espetáculo. Não que isso seja novidade, mas, quero chamar atenção para o verbete “espetáculo”. A sensação que tenho é de que o “espetáculo” é maior do que as individualidades (interpretativas, de unidades dramatúrgicas, etc); o que se escreve cenicamente é capaz de comunicar-se diretamente com a audiência, e a separação teatro//música não tem mais lugar, ambos unem-se, isso sim, em função do “espetáculo”. Uma simbiose que reflete o resultado de um trabalho (exaustivo!) sobre duas linguagens da comunicação artística (teatro e música) que, irmanadas e de mãos dadas com algumas outras artes técnicas (som, luz, etc), subscrevem esta terceira forma de comunicação: o “espetáculo”.

Tudo isso para, considerando os debates pelos quais passamos, nos dez festivais em que estivemos, e algumas outras discussões, ressaltar que a força comunicativa desta encenação está para além do que supunha a nossa pesquisa. Nos demos conta disto durante o processo e apostamos no fato de que esta montagem deveria vestir mais do que a causa pela qual a escolhemos, já que, entre outras coisas, estávamos em busca de uma experiência total.

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