A mímesis constelatória de um maravilhoso museu em movimento

Crítica de O maravilhoso museu da caça e da natureza, dirigido por Renato Linhares

30 de setembro de 2012 Críticas

O maravilhoso museu da caça e da natureza, espetáculo dirigido por Renato Linhares, que esteve em cartaz no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto de 31 de agosto a 23 de setembro deste ano, traz ao tablado uma série reflexiva sobre a mímesis. Esta categoria, felizmente, não é mais igualável ao significado de limitação artística, trazida pela moralização da ideia de cópia-modelo. Pode-se percebê-la, como mostra o espetáculo, de modo constelatório, abrindo-se em imagens que se cruzam e se distanciam, e não apenas por meio da percepção da cópia de um paradigma fixo.

Walter Benjamin diz, em seu ensaio A doutrina das semelhanças, que “os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas.” Daí ele avança: “A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também de moinho de vento e trem.” (BENJAMIN, 1996, 108). Neste sentido, o filósofo nos expõe o quão ampla é a faculdade mimética na criança, sem restringi-la a imitação de pessoas, mas apresenta-nos o potencial de imitação em direção ao sujeito (“comerciante ou professor”) e à máquina (moinho de vento e trem). Em outra passagem, Benjamin mostra, fundamentalmente, o quanto a busca pelo semelhante se aproxima da práxis do astrólogo. Assim como esse interpreta a diversidade das significações dos planetas e as tensões existentes entre eles, num jogo de associações em busca das semelhanças, a criança brinca de ser “comerciante ou professor” e “moinho de vento e trem”. Ela, portanto, modifica o campo circunstancial do referente e pode produzir jogos de semelhanças tanto dentro de um contexto humano quanto maquínico.

“A criança (…) brinca de ser…” Ou seja, mais do que copiar, a arte da imitação é, para Benjamin, um brincar de ser. Logo, tal jogo consiste em uma operação mimética constelatória, que não está fechada numa relação modelo-cópia, mas na variação de jogos entre campos circunstanciais. Vai-se de um polo a outro, notando, fundamentalmente, a semelhança da máquina no homem e do homem na máquina.

Assim sendo, o título do espetáculo O maravilhoso museu da caça e da natureza nos aponta para dois contextos miméticos: a caça e a natureza. Lado a lado, estes nomes indicam conjuntos bem determinados. A caça como ação de dominação (animal) do homem diante da natureza, e a natureza como campo semântico em que o homem experimenta a animalidade do seu dentro e fora, uma vez que ele próprio é natureza caçada e caçante. Deste modo, os conjuntos se separam, mas, ao mesmo tempo, tocam-se num ponto de absoluta semelhança. Isto porque a caça parece ser a ação essencial que demonstra a natureza animal do homem.

O início do espetáculo ocorre com presença dos três performers (Alice Ripoll, Fabrício Belsoff, Laura Samy) no lado esquerdo do tablado. Parados por um tempo incomum, eles iniciam uma movimentação de rotação com os olhos, experimentando todos os espaços que esses podem ocupar. Neste breve momento, o olho é mais precisamente um órgão tátil, enfrentando seus limites corporais, percebendo sua posição anatômica na face humana, do que um órgão capaz de oferecer o fenômeno da visão. É como se o olho estivesse sendo submetido a um exercício de consciência corporal, conhecendo a sua integração articulatória com a pálpebra, com os cílios, sentindo a luz que produz a visão – antes de olhar o que está em volta. Os performers olham para o entorno do tablado e para o público. Mas o que se observa, principalmente, neste gesto, é que o olhar e o olho estão sendo vistos como indissociáveis. Não há a ilusão histórica de um olhar que se fundamenta na alienação de sua natureza. Este alheamento equivoca-se, seguramente, ao sentir-se pleno de espírito (o Espírito do tempo: a História), sem a percepção de qualquer pulsação corpórea. E o espetáculo de Linhares enfrenta conscientemente esta questão que opõe natureza e história, apresentando uma história que é natureza e uma natureza que é histórica.

A maturidade intelectual do espetáculo é a de compreender que o olho e o olhar humanos já estão enlaçados pela experiência histórica, isto é, a natureza e a caça tornaram-se museu, fazendo parte de um patrimônio cultural do homem. Contudo, partindo desta constatação, o espetáculo expõe, pelo movimento intelectual da dança, a transformação deste museu em “maravilhoso”. Não para enfatizar uma retórica irracional do corpo. Mas para contextualizar a razão histórica do olhar dentro deste corpo que se articula numa mímesis constelatória de brincar de ser, assim como a criança enforma-se da/na linguagem no que essa possui, indissociadamente, de vida e história.

O maravilhamento diante do potencial constelatório da linguagem retira a caça e a natureza da museificação. Esta ação se formula pelo jogo intelectual e criativo de produzir através do corpo humano uma constelação de semelhanças: variadas formas incompletas e distantes umas das outras, que surgem pelas tensões e irradiações dos movimentos e não pela imitação de um referente estável.

Após o movimento de olhos, os performers conquistam novas direções e movimentações no tablado, ainda que freadas, saindo da posição frontal inicial. E sem serem guiados por uma sequência de movimentos idêntica, os dançarinos vão, por meio da produção de vibrações internas, conquistando consciência das articulações dos ossos, da musculatura, chegando à ocupação do espaço do palco por meio de saltos.

Durante um período mais extenso do que o da rotação dos olhos, os três separam-se espacialmente, sacudindo seus corpos e agitando suas cabeças e cabelos. Pouco tempo depois, esta rotação ressurge no momento em que os três se encaminham para frente e ficam rente ao público. Ali, o ritmo e o giro das cabeças e dos cabelos, vistos anteriormente, reaparecem nos braços e, mais intensamente, nas mãos que se ‘tocam’ através do calor circular do movimento de orbitar-se uma em volta da outra, apesar de não experimentarem o toque estático do aperto de mãos.

Deste toque de calor, surge o encontro. E dele inicia a caça. O corpo aprendeu a ser natureza sozinho. Ele tremeu e saltou. Agora é a vez de ele se tornar caçador, sem abandonar o sentido de ser, ao mesmo tempo, natureza. Isto porque a força libidinal da caça aviva outras naturezas. E da fricção corporal dos performers contempla-se novas formas animais. Mais do que a imitação de um modelo fixo pertencente a um animal específico, nota-se a incompletude de garras, asas, orifícios que se metamorfoseiam em profunda latência.

A cena escurece. E sem que se enxergue a movimentação corporal dos dançarinos, ouve-se ainda o ruído dos corpos se debatendo. Esse vai sendo reduzido, até dar lugar a outro fenômeno acústico: o som de sucção de água. Quando a emissão sonora da sucção se estabiliza, a luz volta ao tablado, dando a ver uma cena impactante: os três performers estão nus, enfileirados e agachados. Alice Ripoll está com um balde de água transparente em sua frente, Laura Samy, com a face entre as nádegas de Alice, e Fabrício Belsoff repete o posicionamento de Samy, pondo seu rosto entre os glúteos da mesma.

Do ponto de vista da mecânica dos movimentos, o quadro não é estático, pois Ripoll simula a sucção da água, enquanto os outros fazem o mesmo com os orifícios dos ânus – sendo que Ripoll não suga nenhum orifício, e o de Belsoff não é sugado. É uma espécie de cadeia alimentar erótica com início (Ripoll), meio (Samy) e fim (Belsoff). A cena se desfaz por meio da iluminação, e o quadro ganha destaque na encenação.

Tal cena aparece de modo “mágico” e libidinal, por meio do recurso da abertura e do fechamento da iluminação. Não se trata de uma nudez banal. Nem do seu oposto: uma nudez heroica, orgiástica. Mas da apresentação da mútua dependência erótica dos corpos. Ou seja, os corpos alimentam-se deles próprios. Eles se parasitam. Entretanto, a ação de parasitar não vem sobrecarregada de qualquer mal-estar moralizante. Parasitar e nutrir-se do outro se tornam semelhantes. E o som picotado da sucção da água constrói um leitmotiv leve para o quadro erótico, retirando qualquer moralismo da ação de parasitar. Há, evidentemente, um parasitismo vertical e nocivo: do senhor e do escravo. Mas o espetáculo exibe outro: o parasitismo horizontal de corpos desejantes, dispostos numa horizontalidade prazerosa.

Desce a cortina. Em seguida, abre-se. E, novamente, na esquerda do tablado estão os performers. Neste momento, estão sentados em um sofá mole. Individualmente, cada um se relaciona com o objeto, que, devido a sua consistência molar, impulsiona os corpos, sustentando a movimentação dos dançarinos por um tempo. Belsoff inicia e finaliza a ação de desforrar o sofá. E, em seguida, todos os intérpretes rastejam por um tempo no chão. Tornam-se minhocas, tubarões, baleias, peixes, entre outros. Porém, tais formas nunca são vistas formatadas, e sim por meio de movimentos alusivos que solicitam do espectador a completude das imagens.

O palco fica vazio. Vestida, Laura Samy volta sozinha ao tablado. Ela traz uma planta em um vaso, e a põe no chão bem próxima de si. Sentada, ela principia a ação de cortar as unhas. Depois, arranca os fios dos cabelos com as próprias mãos. Joga os resíduos no chão e com um cuspe retirado da boca, mistura as matérias que não se fundem, e as coloca na terra da planta. Unha e cabelo, agora, expressam a falta de utilidade desta queratina humana. As unhas não nos protegem mais dos outros animais. Nem tampouco os cabelos nos aquecem. Tornaram-se desnecessários. Foram domesticados e caçados pela natureza e pela cultura; assim como, de certa forma, a planta foi domesticada pelo vaso.

Após repetir uma fala gravada, Samy se retira brevemente do tablado e retorna com uma faca na mão, mostrando, imediatamente, um ovo que sai de sua boca. Através de um número de plateia com a faca e o ovo, ela corta e come o mesmo. Enquanto Samy executa uma dança circular, Belsoff chega ao palco e, de frente para a plateia, dá uma fala emocionada. Alice Ripoll volta ao tablado e em conjunto com Laura Samy constrói uma linda movimentação de braços e cabelos. Os três dançam por mais um período no palco. Porém, neste momento, experimentam formas de encaixes entre os corpos, sem tanto atrito entre eles, até se encontrarem ao fim do espetáculo por meio da junção imóvel dos três corpos.

A operação reflexiva do espetáculo é a de retirar o termo museu da lógica mimética de cópia-modelo fundamentada num discurso patrimonial. Aceitando a limitação do corpo vertebral do homem de representar formas de vidas como é o caso dos organismos moles, o espetáculo não se ocupa em imitar um modelo, e sim de compor um ambiente lúdico, por meio da força imaginativa do movimento, fortalecida pelo arejamento conceitual da mímesis de trazer à tona o extrassensível. Este só surge pela liberdade dada ao espectador de experimentar a fruição de movimentos constelatórios que, como os sons onomatopaicos de línguas diversas, assim como postula Walter Benjamin, trazem à baila o semelhante. De fato, o semelhante só se torna apreensível por meio da ação de brincar de ser. E o brincar de ser deste espetáculo nos aproxima da natureza.

Como diz Linhares, o espetáculo foi gerado a partir do seguinte mote: “É quase uma brincadeira de pensar como seria a natureza nos olhando de volta,” (1) E a brincadeira deste pensar está imbricado no gesto de brincar de ser constelatório que cria o maravilhoso para o museu da caça e da natureza.

Referência bibliográfica:

BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Obras Escolhidas: Magia e técnica, Arte e política. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Nota:

(1) http://blahcultural.com/o-maravilhoso-museu-da-caca-e-da-natureza-estreia-nesta-sexta/

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.

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