A impossibilidade da representação do trauma

Crítica ao espetáculo Villa, do grupo chileno Teatro Playa

31 de julho de 2012 Críticas
Foto: Daniel Protzner.

Ao redor de uma mesa de reunião, três mulheres jovens debatem o destino de um terreno. A cena armada com tal simplicidade pelo dramaturgo e diretor chileno Guillermo Calderón vem de encontro à noção da impossibilidade da representação do trauma que sustenta o espetáculo Villa, apresentado no 11º Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte. O terreno em debate é o vestígio de um antigo centro de tortura e extermínio mantido pelo governo chileno do general Pinochet. A Villa Grimaldi foi cenário de atentados contra a vida e de todo tipo de outras atrocidades, até mesmo o estupro de mulheres por cachorros, antes de ser derrubada pelos militares. A questão posta em discussão pelas personagens é como tratar esse passado atroz sem desrespeitá-lo ou diluí-lo. Como falar que mulheres eram estupradas por cachorros sem criar não mais que uma frase de efeito sensacionalista?

A limitação da linguagem é próxima à limitação da imagem. Uma vez que o passado está perdido e inacessível, senão pela memória filtrada pela experiência presente, que nunca o reconstituirá e, portanto, nunca poderá desfazer seus males, quiçá lhe fazer justiça, o que fazer com os destroços? Como recriar aquele espaço de modo que mostre o horror que abrigou? Antes ainda: é desejável que o horror seja reproduzido? Que possa ser sentido novamente, ainda que em ínfima proporção, para que não seja apagado pelo tempo? Ou perpetuar o horror seria uma decisão sádica, e mais desejável seria transformá-lo em algo belo? O que ofende mais? O que desvirtua mais a memória do trauma? A exposição da dor ou sua atenuação pelo belo? O que significam, nesse caso, os direitos humanos?

As perguntas não cessam. Brotam direta ou indiretamente dos diálogos que cruzam visões de mundo distintas, defendidas com convicção num exercício dialético que resiste a uma síntese. Em forma de debate, com um fio de fábula a justificar o encontro das três personagens, a cena se configura de modo realista, afastado da proposta cênica brechtiana de estranhamento épico. Contudo, realiza um teatro crítico calcado nas contradições, conforme foi, ao menos em parte, a essência da ambição brechtiana.

É por outro caminho que a forma adotada por Calderón entra em tensão com o tema e contribui para sua problematização. Sobretudo, pela recusa à espetacularização. Outro ponto fundamental é a escolha dos espaços de encenação, cuja história deve necessariamente estar relacionada ao tema. No Chile, foi encenada no Parque da Paz Villa Grimaldi. Em Belo Horizonte, no antigo auditório da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, lugar emblemático da resistência à ditadura militar em Minas Gerais, que foi invadido em busca de professores e estudantes que se opunham ao regime. Ao optar por esse modo de site specific, o grupo Teatro Playa ao mesmo tempo absorve o peso histórico do ambiente ao redor e chama a atenção para o quanto ele ainda guarda ou não da memória da história política e da brutalidade abrigada. Num caso como a Fafich, nada no percurso dos espectadores da entrada do prédio ao auditório de encenação depõe sobre esse passado de resistência e invasão. Entre aquelas paredes, os vestígios concretos do ontem estão apagados.

Obviamente, a crítica apresentada em Villa não se limita à situação histórica específica chilena. No mínimo, diz respeito ao passado ditatorial comum à América Latina, no qual se inclui o Brasil – por mais que aqui a Lei da Anistia e a recusa em abrir os arquivos da ditadura demonstre a indisposição a enfrentar os vãos obscuros desse passado, o que resulta frequentemente em criações artísticas que não comportam a complexidade dos acontecimentos.

A dramaturgia do espetáculo chileno é uma composição intrincada de dúvidas sobre a legitimidade das soluções existentes para a representação do trauma no campo político e público, mas cujo questionamento atinge também os traumas pessoais e privados que constituem unitariamente o todo. Como reagir quando a memória do carrasco se concretiza no rosto da criança que nasceu do ato de abuso? Como lidar com a recordação do horror nesse campo íntimo? Vitimizar-se? Não permitir que seja esquecido? Vingar-se? Sublimá-lo? Calderón evita em todos os momentos o maniqueísmo, mesmo no delineio das personagens responsabilizadas pela decisão sobre o terreno, dotadas em seu comportamento dos mesmos impulsos que elas discutem, inclusive o instinto de violência.

A designação de exatamente três pessoas para tomar a decisão sobre o terreno revela ainda a impossibilidade de um consenso diante de demandas distintas e das diferentes configurações de aliança que o trio pode conformar em tentativas de chegar à maioria ou de manipular a opinião alheia. Faz-se assim a crítica às práticas políticas. O fato de serem jovens entrega à geração que não viveu em seus corpos a violência política a responsabilidade por exumar o passado, não ignorá-lo. E chama o público a recusar a alienação.

São dois os projetos inicialmente admitidos para votação pelas três. Um deles, reconstruir a casa de tortura tal qual era, assombrosa e comovente, como um lugar por onde o público possa percorrer experimentando o pavor do passado. Talvez com um cachorro em exibição, para que a violência dedicada às mulheres não seja apagada da história. O outro, a construção de um museu moderno, limpo e branco, onde se possa acessar por computadores com seria hoje a vida daqueles que lá foram sacrificados, se a tortura não houvesse acontecido.

As duas soluções servem também como dois caminhos estéticos, duas maneiras de se entender a arte. A transcendência pelo belo e harmonioso ou a experiência do terrível e do desarmônico. O alívio ou o desassossego. Duas possibilidades opostas mas igualmente descartadas diante da traição que, cada uma ao seu modo, inevitavelmente praticam em relação ao passado e à memória. A representação revela sua face de traição leviana. Os ecos dessa crítica chegam ao teatro em si, e influem definitivamente na forma como Calderón estrutura o espetáculo, com uma crítica ao próprio caráter de espetáculo da criação teatral, contraposto por uma proposta cênica austera e centrada no conflito de pontos de vista que expõem as fissuras e fragilidades uns dos outros sem a ilusão de consenso ou de uma verdadeira solução.

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