Concretude atravessada pela subjetividade

Crítica da peça A propósito de Senhorita Júlia

25 de janeiro de 2012 Críticas
foto: Divulgação.

O trânsito entre a afirmação e a suspensão do realismo está na base de A propósito de Senhorita Julia, encenação que localiza no Brasil do século XXI a história da personagem-título, escrita por August Strindberg no final do século XIX. Walter Lima Jr. e José Almino também utilizaram outra apropriação do original de Strindberg, realizada pelo dramaturgo Patrick Marber, que transportou a ação para a Inglaterra da década de 40 do século XX.

A ambientação contemporânea proposta visa a potencializar a identificação do espectador com o conflito social descortinado por Strindberg. E sublinha a discussão em torno da possibilidade de ascensão do homem comum (com referência direta ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), abordada tanto como direito legítimo quanto como ambição que esbarra em conduta ética.

Essa operação dramatúrgica parece reforçar, a partir de Strindberg, o debate sócio-econômico em torno da relação passional entre a aristocrática Julia e o motorista Moacir (Jean, no original). Em meio à euforia de uma festa realizada pelos empregados de seu pai, Julia dá início a um flerte algo inconsequente com Moacir, despertando nele um misto de evocação do platônico amor de infância e de quase incontrolável desejo de escalada social. O envolvimento sexual desestabiliza, mas não anula a hierarquia travada entre ambos – que não conseguem evitar uma mescla entre o autoritarismo da relação patrão/empregado e a agressiva intimidade dos amantes.

Entretanto, ainda que a conexão com o contexto atual seja destacada (a exemplo também das referências ao fervor evangélico), alguns sinais projetam os personagens para além da discussão concreta em torno de seus papéis sociais. Como assinala Cristiane, empregada da casa e namorada de Moacir, “eu espero tão pouco das pessoas – por isto, quase não me decepciono”. Há uma afirmação da subjetividade dos personagens, frequentemente assombrados (nos casos de Julia e Moacir) pelo descompasso entre o que desejam e a realidade com a qual se deparam.

A montagem propõe uma relação ambígua com o real. A preocupação em fornecer uma reconstituição da realidade transparece na ambientação da cozinha (cenário de José Dias), espaço onde se desenrola a maior parte da ação, nos figurinos (de Angèle Fróes) que evidenciam as discrepâncias sociais e na iluminação (de Daniel Galván) que informa sobre a passagem do tempo.

Em contrapartida, o cenário e a iluminação se revelam como criações não totalmente apoiadas no “concreto”, à medida que a encenação avança. O painel com nuvens ao fundo, apesar de indicar as condições climáticas do lado de fora da casa, promove certa quebra do realismo ao trazer à tona a dimensão do sonho. A luz deixa de abarcar a totalidade da cozinha e se torna mais concentrada nos momentos em que os personagens discorrem sobre o passado. A trilha sonora, a cargo de Walter Lima Jr., oscila entre a afirmação da brasilidade e acordes mais discretos para os instantes em que os personagens empreendem atos de revelação.

O som evidencia ainda uma alternância importante: traz à tona o mundo externo por meio do barulho da festa nos jardins da casa e o suprime sempre que os personagens se mostram atravessados pelo passado. Há, em todo caso, um mundo invisível ao público, no qual se desenrolam acontecimentos relevantes – além da festa, que ameaça tornar pública a relação que começa a despontar entre Julia e Moacir, o quarto dele, onde ambos passam a madrugada, alternando, em grau considerável, a natureza do vínculo até então estabelecido.

Alessandra Negrini destaca a sedução de Julia através de movimentos lentos e sinuosos. A atriz investe num trabalho vocal em que contrasta uma tendência ao derramamento emocional com a autoridade própria de Julia. E preenche com imagens o trecho referente ao desajuste familiar. Armando Babaioff valoriza o caráter popular e a vibração sanguínea de Moacir. Realça o texto por meio da movimentação corporal (em especial, das mãos), mais ou menos expansiva de acordo com as circunstâncias da peça, e insere comentários críticos na entonação de determinadas falas (“Miami é lugar para nós”). Dani Ornellas transmite a indignação e certa energia messiânica de Cristiane.

Informações sobre a peça: http://www.turbilhaodeideias.com.br/projetos/34/53

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da Isto É / Gente.

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