A construção da figura paterna em cena

Crítica da peça O filho eterno, do livro de Cristóvão Tezza

30 de janeiro de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

O ator Charles Fricks continua em cartaz, depois de uma temporada bem sucedida em 2011, com o monólogo O filho eterno, baseado no romance homônimo do escritor Cristovão Tezza. Em cena, o ator toma para si não só a voz do narrador como também forja e assimila, no espaço do palco, traços psicológicos que refletem a condição de um sujeito que se vê confrontado com os limites da desrazão humana, quando descobre que seu primeiro filho é portador da Síndrome de Down.

O fio condutor da trama se passa na década de oitenta, momento histórico em que, pelo que fica claro no texto de Tezza, ainda não havia um discurso articulado de organizações e instituições sociais com intuito de promover o debate público sobre as relações de alteridade entre os indivíduos considerados “normais” e aqueles que eram portadores de algum tipo de deficiência física, mental. Certas denominações pejorativas, que classificavam pessoas ou grupos sociais, no passado, podiam ser ditas sem que o sujeito que as proferisse sofresse qualquer tipo de punição por parte do sistema, diferentemente do que vemos acontecer nos dias de hoje. Este passado não está muito distante de nós.

Voltando as nossas atenções para o monólogo, a série de questionamentos e dilemas existenciais, verbalizados pelo pai, é apresentada ao público a partir da sequência dos fatos vividos pelo personagem de forma cronológica. Desde o instante em que o aspirante a escritor encontra-se na maternidade, ansioso e preocupado com a ideia de constituir uma família nos moldes tradicionais, sem ter ainda atingido as condições ideais para tal, até sua fase mais madura, em que consegue alcançar um relevante sucesso na carreira de escritor, em harmonia consigo mesmo e com a sua consciência.

Ao longo da narrativa, o texto adaptado por Bruno Lara Resende vai se constituindo em um quadro expositivo de fluxos e oscilações comportamentais, que variam desde as patéticas especulações alegres de um pai diante do futuro do filho, tentando adivinhar suas possíveis escolhas e opções de vida, até o instante em que a terrível verdade dos fatos surge e os sonhos são demolidos como num castelo de cartas. Nessa moldura de sentimentos conflituosos, o pai manifesta, a princípio, um estado emocional de fúria pela sensação de ter que carregar, eternamente, um “fardo pesado” como ele mesmo diz no texto, sem beleza simétrica, implicando com as feições características de quem nasce com essa anomalia, mas logo em seguida, começa a denotar sintomas de preocupação quando descobre que seu filho, já um pouco crescido, se perdeu pelas ruas do bairro. Nesse sentido, há um corte na narrativa que evidencia traços significativos de um afeto em plena gestação.

A encenação de Daniel Herz prioriza, neste aspecto, o conteúdo, o cuidado em manter, no espírito da representação, a agressividade dos enunciados, procurando atingir a plateia com a virulência com que as verdades dos sentimentos são expostas em seu estado bruto. A força da ação cênica se destaca na relação de crueldade em que o amor e o carinho de um pai pelo filho nascem com a ajuda do tempo, depois do sentimento de asco e do desejo de sua morte. Por essa razão, o trabalho de construção dos traços objetivos e subjetivos do personagem é conduzido por uma necessidade pontual de verossimilhança.

O desempenho de Charles Fricks é materializado no palco a partir de uma sugestão rigorosa de leitura, entendimento e reconstrução de traços comportamentais bem definidos. Seu corpo serve à palavra e às circunstâncias dadas pela narrativa de Tezza. A constante movimentação do ator em cena, movendo sua cadeira para vários lados do palco, a partir dessa perspectiva, se configura como conseqüência dos pensamentos, aflições, humores e demais instâncias psíquicas do personagem. O efeito criado pela atuação de Fricks e pela linguagem do espetáculo pode levar o público não somente a se colocar diante de seus próprios questionamentos, como também a se posicionar hipoteticamente no lugar do protagonista e dissecar reações particulares possíveis, semelhantes ou não às do personagem. Quanto mais expressiva for a leitura dos indícios de similitude entre público e personagem, mais palpável se torna a sensação dos reflexos da nossa persona.

Dentro dessa escolha de direção e atuação, a cenografia de Aurora dos Campos conta com duas cadeiras que diferem sutilmente em suas formas. A teatralidade no jogo da atuação com tais objetos estabelece a atmosfera de intensa dor e solidão do personagem diante da experiência que relata. As duas cadeiras se tornam figuras na encenação: a imagem de um automóvel, a sala de espera na maternidade ou a própria imagem sugerida do filho, por exemplo. Desse modo, as duas cadeiras evidenciam certo despojamento na construção cenográfica, bem como são dispositivos cênicos determinantes na relação que o ator estabelece com o texto e em como as imagens e estados d’alma por ele gerados são externados ao espectador. Na cena final, as duas cadeiras sugerem a imagem do pai e do filho profundamente unidos por uma relação que soube contornar o conflito entre o temor e a aceitação ao que é diferente.

Há ainda no espaço uma espécie de ciclorama ao fundo do palco em que a iluminação de Aurélio de Simoni procura corroborar para a construção de uma atmosfera temporal e espacial instalada pela atuação. Já que na experiência de O filho eterno a perspectiva do olhar do espectador se volta para o personagem construído pelo ator e todo seu apelo emocional diante da narrativa de Cristóvão Tezza. O espaço despido de uma cenografia naturalista, um espaço quase vazio, em que temos um ator querendo contar uma história. A encenação de O filho eterno aciona uma carga emotiva que traz consigo o espectador dessa experiência. Há na relação estabelecida entre cena e plateia o desejo de emocionar através de uma história de dor e superação, desejo evidenciado pela intensidade física e emocional que Charles Fricks confere ao personagem e às palavras biográficas da narrativa.

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

Pedro Allonso é ator e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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