Lap Dance: processo artístico por meio de aforismos sobre a provocação

Crítica da performance Lap Dance, de Tânia Dinis

30 de dezembro de 2011 Críticas
Foto: Marta Bernardes.

Sobre o espaço convencional da expressão teatral, o palco, a atriz portuguesa Tânia Dinis busca a arte da performance como meio de expressão para as suas ideias. A tríade básica da expressão cênica está ali – atuante, texto e público –, mas o elemento de “organização pelo self”(1), exibindo o ego pessoal da artista, assim como o acaso, presente principalmente na manifestação da performance, atribui o diferencial desta ação, a qual reforça o quanto a performance se encontra mais próxima do teatro do que das artes plásticas.

Em Lap Dance, performance de Tânia Dinis, realizada no âmbito do projeto “Tômbola Show”, de Marta Bernardes, a ação tem início com a própria artista a comercializar números de uma rifa, cujo sorteio podia ser assistido pelos espectadores, os quais tentavam a sorte por apenas um euro. Garanti meu número oitenta e oito numa segunda-feira e aguardei ansioso pelo inesperado prêmio que poderia ganhar no domingo, 27 de novembro de 2011, no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos (Porto-Portugal).

Ao chegar ao recinto, a informalidade nos deixava completamente à vontade, como se estivéssemos num bar. Aliás, mesas e cadeiras de ferro, típicas de botequim, alojavam os espectadores. Sem atraso, a performer, por detrás de uma mesa, com uma singela tômbola, emergiu e anunciou o início da ação sem proferir palavras decoradas à plateia; dizia, sem cerimônias, que iria fazer o tal sorteio e, então, selecionou o número sessenta e cinco, fazendo com que um sujeito de uns trinta anos, sem hesitação e nem empolgação, neutro, levantasse e se dirigisse ao palco. Ouviam-se alguns burburinhos aliviados e outros lamentosos. A plateia estava viva; em momento algum apática.

A performer então lhe perguntou: “alguma vez, alguém já lhe dedicou uma lap dance?” Para a surpresa geral, ele respondeu afirmativamente. A performer devolveu que nunca havia feito e que não iria fazer uma ali.

Quando o sorteado é colocado em uma cadeira no palco, a trilha Down in Mexico, do The Coasters, tem início, remetendo a uma clássica cena de lap dance do filme Death Proof, de Quentin Tarantino. Auxiliada pela canção, a artista solta os longos cabelos e, com o mesmo acessório que os prendiam, conecta uma cortina de veludo, situada atrás do homem, a um fio que atravessa o fundo da cena. De quatro, foi instalando luzes que delimitavam o espaço da suposta lap dance, depois, afastou as pernas do sujeito e acendeu uma luz que estava acoplada à cadeira do sorteado, ao mesmo tempo em que a música proferia “I said… Tell me dad, when does the fun begin?”

Os gestos, desprovidos de sentidos libidinosos, embora pela forma os fossem, tornam-se imaculados por executarem ações concretas e que não podiam ser de outra forma realizadas. Por estarem associados ao som, ao ambiente de tom vermelho, de luzes que remetem às boates como as do “Red Light District” de Amsterdã, os gestos levantam por segundos o elemento provocador sexualizado, mas que não se sustentava por ter sido demolido pela função prática que a artista ofereceu para cada uma das formas corporais adotadas: estava de quatro para instalar luzes e não por outro motivo, aproximava sua mão ao membro sexual do participante em cena, pura e simplesmente, para acender a lâmpada que estava debaixo dele, entre outros recursos. Todos os gestos foram dúbios, compreendidos pelo sentido literal e pelo que remetiam quando agregados aos códigos voluptuosos.

Instalado o espaço de cena para dar início a tal lap dance, nada do que era previsto acontecia. O que o próprio título da ação denotava como evento transformou-se num bate-papo completamente informal sobre ideias em fase inicial, conferindo um humor patético àquela expressão dramática que ocorria. Destaco que o patético não deve ser entendido no sentido pejorativo da palavra, mas sim por remeter a uma situação imprópria, inadequada. E a performance era justamente isso, não dava ao público o que o título da proposta assegurava. Não se tratava de uma dança erótica comum de clubes noturnos, mas sim de uma exposição de ideias cruas, confusas, em etapa primitiva sobre um determinado assunto. Era a própria artista a exprimir seus pensamentos; não havia personagem ali e isso estava explícito na ausência de caracterização da artista, que usava roupas e acessórios simplórios do seu dia-a-dia.

Foto: Marta Bernardes.

Tânia Dinis parecia ter convidado pessoas para ouvir pensamentos que acabavam de lhe ocorrer. Aforismos imprecisos sobre a provocação, a sedução e o erotismo arregimentados ao corpo feminino eram mencionados por ela como pretensão de um tema que ambicionava aprofundar. O texto articulado seguia o fluxo de pensamento dessa artista; não havia um texto decorado. Era como se estivéssemos na casa da própria artista e ela tivesse nos chamado para contar certos “insights” que lhe vinham à tona (muitos deles naquele instante). Então, num determinado momento, a performer sentou-se no colo do participante para ler um texto que havia recebido de um amigo (Pedro Bastos) como um incentivo ao trabalho que só existia como ideia ainda. Ele escreveu algo sobre a forma como as mulheres despertam a libido nos homens mesmo quando têm a intenção oposta, mesmo quando trajam roupas esportivas ao invés de elementos óbvios de fetiche. Por fim, ele questiona se os homens são todos uns tarados.

Terminado o texto, a artista se levanta e finaliza a sua crua conferência de juízos mal resolvidos que ainda não podem ser assentados como uma obra concluída. Aliás, a obra que nem foi principiada já é a própria obra. Em pé, ela diz ao participante que, como não pretendia frustrar as expectativas dele, tinha um arremate para a noite, um grand finale. Ela sai e deixa, sobre o palco, um coelho de pelúcia eletrônico, o qual, com auxílio de pilhas, anda, rebola e emite som de funk carioca cantado por uma criança, cuja letra é indetectável. Ironicamente, a imagem do coelhinho de pelúcia, naquele contexto, pode nos remeter ao ícone da revista masculina Playboy e ao universo de fetiches que compõe as fantasias sexuais masculinas com relação ao corpo da mulher. O brinquedo, pueril, fofo, lúdico, é corrosivo na crítica que carrega em si enquanto alegoria, pois denuncia a forma como as mulheres são vistas, segundo uma visão machista e egoísta, que as condenam à qualidade de objetos de prazer.

Uma “performance fringe”, conforme Roselee Goldberg nomearia, um “novo teatro” ou seja o que for e que não permite rótulos – atributo típico da performance que procura escapar do analítico, das definições – retoma discursos feministas, sem levantar bandeiras, e prova que, apesar da performance ter as artes plásticas como origem, a finalidade desta expressão está nas artes cênicas.

Notas:

(1) Expressão utilizada pelo autor Renato Cohen em A performance como linguagem.

Tales Frey é encenador, crítico de arte, performer e videoartista. Doutorando em Estudos Teatrais e Performativos pela Universidade de Coimbra. Mestre em Teoria e Crítica da Arte pela Universidade do Porto. Graduado em Direção Teatral pela UFRJ.

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