Considerações sobre um Museu da Dança

Artigo sobre o Musée de la danse: Expo Zéro de Boris Charmatz no PERFORMA 11, em Nova York

30 de dezembro de 2011 Estudos
Foto: Elizabeth Proitsis. Cortesia: Performa.

Musée de la danse: Expo Zéro é uma exposição sem obras: sem fotografias, sem esculturas, sem instalações e sem vídeos. Sem nenhuma coisa, nenhum objecto estável. Nada a não ser artistas e áreas ocupadas pelos gestos, projectos, corpos, histórias e danças que cada um vê ou imagina.

Partindo deste princípio, dez personalidades (artistas, arquitectos, teóricos…) estiveram em residência na St. Patrick’s Old Cathedral School, [uma velha escola que durante o Performa 11 funcionou como Performa Hub, sede do festival]. Depois de três dias juntos no espaço da escola ,estas personalidades apresenta[ra]m aos visitantes as suas próprias visões, subjectivas e utópicas, do que um “museu da dança” pode ser.

NOTA: A grafia do português de Portugal foi mantida.

E então entrei na sala onde estava Valda Setterfield, que durante muitos anos dançou para a Companhia Cunningham.
Valda ia a meio de uma história sobre uma viagem da Companhia. Estavam, acho, em Veneza.
Carolyn Brown ensaiava um solo onde corria pelo palco num círculo para terminar no centro, à boca de cena, num relevê em balancé. Robert Raschenburg desenhara os figurinos. Rauschenberg observou Carolyn a dançar, elegante, no seu
leotard e saiu imediatamente para a rua. Apanhou latas amachucadas, roupa velha, garrafas e outros pedaços de lixo. Fez um cinto com todas estas coisas e colocou-o em Carolyn, que, sob o seu olhar satisfeito, repetiu a coreografia.  Ouvida esta história da dança saí sem perguntar mais nada. Estava tudo dito.
Musée de la Dance: Expo Zero, Performa 11, 4 Novembro de 2011
(esta história foi-me contada pela performer Abigail Levine)

Uma rapariga que me pede um objecto para a seguir o dançar.

Acabada de chegar, a início não compreendo a proposta e não reajo logo. A senhora ao meu lado tira da mala um caderno e dá-lho. Sinto que desta me escapei à interactividade. Antes ainda de prestar a atenção devida à rapariga (Eleanor Bauer, coreógrafa e bailarina) que entretanto está realmente a mexer-se, reparo que estamos num dos corredores de uma escola, um daqueles que dão não para as salas de aula (corredores compridos com salas do lado direito), mas sim para as escadas ou para a zona das casas de banho, não dá bem para compreender.

Estou completamente deslumbrada com o espaço em que me encontro, uma escola grande, vazia, provisoriamente ocupada pelo PERFORMA 11, de que é uma espécie de sede. Entrei há pouco neste espaço limpo e aberto com vários andares e um pátio ao centro, num sábado à tarde, vinda da movimentada Mott Street, onde magotes de gente se afadiga a fazer compras no mercado em frente. Passada uma primeira sala com brochuras e livros do festival fui seguindo as setas que diziam Musée de la danse: Expo Zero e atravessei o pátio até chegar ao outro lado, a uma espécie de outro edifício, mais calmo ainda porque mais longe da rua. Está um dia bonito e sente-se que há todo o tempo de um fim de semana que ainda vai a meio e de um festival acabado de começar. Subo as escadas até ao segundo andar da escola, onde uma placa me anuncia que estou a entrar no Musée de la danse: Expo Zero. Não diz mais nada a não ser isso e por baixo explica:

Musée de la danse: Expo Zéro é uma exposição sem obras: sem fotografias, sem esculturas, sem instalações e sem vídeos. Sem nenhuma coisa, nenhum objecto estável. Nada a não ser artistas e áreas ocupadas pelos gestos, projectos, corpos, histórias e danças que cada um vê ou imagina.

Partindo desta princípio, dez personalidades (artistas, arquitectos, teóricos…) estiveram em residência na St. Patrick’s Old Cathedral School, [uma velha escola que durante o Performa 11 funcionou como Performa Hub, sede do festival]. Depois de três dias juntos no espaço da escola estas personalidades apresenta[ra]m aos visitantes as suas próprias visões, subjectivas e utópicas, do que um “museu da dança” pode ser.

Entro para um corredor (o tal corredor que do lado direito, a todo o comprimento, vai tendo salas de aulas) e percebo que numa das salas de aulas (sem cadeiras) está um homem a andar de um lado para o outro e a falar de filosofia. Coloca questões complicadas e cita autores. Curiosamente é o mesmo homem que, no dia anterior, numa inauguração de uma exposição do colectivo artístico Claire Fontaine na galeria Metro Pictures, no Soho, me chamou a atenção numa obra de vídeo-arte (Claire Fontaine, Sittuations, 2011). Chamou-me a atenção pela agressividade, pelo ar extremamente violento, quase psicótico, da pessoa filmada que pensei ser um obcecado por defesa (o vídeo reproduzia uma sessão de auto-defesa). E agora estava aqui ao vivo, a falar de filosofia. Ainda intimidada pelo dia anterior, decidi não entrar na sala, mas fiquei a pensar quem seria e pensei que deveria ser um actor, nesse caso um excelente actor (no dia anterior convenceu-me plenamente), coisa que depois confirmei (Jim Fletcher, fundador dos New York City Players e actor ocasional de grupos como o Wooster Group e os Elevator Repair Service).

Numa sala, portanto, Fletcher a falar de filosofia, e na sala ao lado?

Entro e vejo Boris Charmatz a explicar a uma família como lhe nasce um movimento: “começa pelo braço, desce pelo ombro até o torso, cintura, bacia, e leva-me até de gatas”. E repete, fazendo ao mesmo tempo com o corpo: “começa pelo braço, desce pelo ombro até o torso, cintura, bacia, e leva-me até de gatas.”. Pára para pensar, isola o movimento parte a parte, decompunha-o, explica à tal família como um movimento se pode decompor noutros, e esta ali, à nossa frente, na sala de aulas vazia, a falar-nos sobre movimento e a movimentar-se, a dançar, a falar de dança. E de como a dança lhe nasce no corpo, de como a dança nos pode nascer no corpo.

Não sei quanto tempo fiquei nesta sala, mas ainda fiquei um bom bocado – nesta altura já estava completamente rendida à proposta e com vontade de ir ver mais salas deste museu da dança. Ao prazer da descoberta do espaço (de poder explorar assim à vontade o grande edifício vazio da St. Patrick’s Old Cathedral School) juntava-se agora o prazer da obra, os momentos de dança que estes dez performers iram partilhar comigo.

Vou de novo para o corredor e reparo que se estabeleceu uma espécie de diálogo não dialogante inter-idiomas entre uma mulher a fazer um pino sem mãos, cabeça no chão, e um homem numa sala longínqua. Ela, cuja língua nativa não é seguramente o inglês, está no corredor encostada a uma parede e repete o que o homem lhe grita de lá da sala ao fundo. Reparamos no seu esforço duplo: esforço de se manter em pino e de, ainda assim, falar, e esforço de decorar e repetir frases elaboradas numa língua que não é a sua. Fica-nos a metáfora para a violência que para um não inglês é ter de se expressar em inglês.

Avanço pela corredor e aparece-me de novo a rapariga dos objectos. Já mais ambientada, e meio acompanhada por uma senhora que entretanto tem vindo a percorrer o Museu da Dança comigo, paro para ver: a senhora mexe na mala e entrega-lhe um penso higiénico. A rapariga recebe-o: toca, sente, pesa o objecto… e zás! transforma-se em penso higiénico, ali, mesmo à nossa frente! … Incha, treme, o seu peito arqueja para a frente e para trás, as bochechas crescem, retrocede uma data de passos largos e velozes até se aproximar de uma janela e começa a produzir sons invulgarmente graves para o corpo que antes víramos. Parece que se vai liquidefazer. E acaba. Voltando a si, vem ter connosco, entrega o penso higiénico à senhora e agradece. Despede-se. Ficamos impressionados com o que acabámos de ver. A rapariga afasta-se. Decidimos voltar a andar.

Avanço até ao fim do corredor e vejo que de uma sala vêm gritos, as pessoas não entram, estão só à porta. Aproximo-me e vejo um homem a suar, numa experiência limite envolvendo a sua voz e respiração. Grita. Vou-me embora e percorro novamente meio corredor até chegar a uma outra sala onde, no centro, um grupo de 3 ou 4 pessoas conversam de pé. A toda a volta, rente às paredes, um outro homem (Jan Liesengang, arquitecto) anda em círculos, como se medisse o perímetro da sala em passos. Junto-me ao grupo e percebo que falam de arquitectura, corpos e cidade. O homem (Fadi Toufiq, sociólogo e politólogo) é de Beirute. Fala-nos da cidade e da guerra, dos bombardeamentos, do ritmo das ruas, do recolher obrigatório…

… até que me apercebo de que passaram duas horas e que o Museu da Dança está quase a fechar.

Foto: Paula Court. Cortesia: Performa.

Apresso-me a ir a outra sala onde encontro de novo Boris Charmatz e a mesma família, agora já num estádio mais avançado. Charmatz, não sem antes explicar onde e como fez este movimento conscientemente pela primeira vez (um bocadinho da sua história da dança, percebemos), ensina-lhes: “começa pelo braço, desce pelo ombro até ao torso, cintura, bacia, e leva-me até de gatas”.

E continua: “uma vez de gatas é como se se limpasse o chão, mas contamina a bacia”. Mexe a bacia. E estão já todos a fazer, Charmatz e a família, pouco a pouco, movimento a movimento. Todos juntos, em uníssono – e repetem. Já é uma coreografia – estão a ensaiar. Até que são horas de ir embora.

E eu sinto que, de facto, passei a tarde num Museu da Dança.

Ana Bigotte Vieira é dramaturgista, tradutora e investigadora. Faz o Doutoramento em Culturas Contemporâneas na Universidade Nova de Lisboa. Entre 2009 e 2012 é Visiting Scholar no departamento de Performance Studies da NYU-TISCH School of the Arts.


Musée de la danse – Centre chorégraphique national de Rennes et de Bretagne. Direcção Boris Charmatz.

Sobre o projecto de Boris Charmatz de transformação do Centro Coreográfico de Rennes e Bretanha num Museu da Dança podem encontrar-se mais informações (e o manifesto) em: http://www.museedeladanse.org/entree

Sobre a Expo Zéro podem encontrar-se mais informações em http://expozero.museedeladanse.org/. No catálogo da Expo Zéro encontram-se igualmente uma série de textos muito interessantes sobre questões levantadas por este trabalho, nomeadamente no que diz respeito a memória, museus e dança: http://expozero.museedeladanse.org/le-catalogue.php.

Tim Etchells do Forced Entertainment fala sobre a sua experiência de performer em Expo Zéro: http://www.guardian.co.uk/stage/2009/oct/02/tim-etchells-performance-dancers

Outra descrição de uma ida ao Museé de La danse: Expo Zero em PERFORMA 11: http://performamagazine.tumblr.com/post/12649835175

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores