Uma dramaturgia de instabilidades

Crítica da peça Trabalhos de amores quase perdidos, de Pedro Brício

20 de setembro de 2011 Críticas
Sílvia Bronstein, Pedro Henrique Monteiro e Branca Messina. Foto: Dalton Valério.

Uma das chaves possíveis para analisarmos a estrutura cênico-dramatúrgica do espetáculo Trabalhos de amores quase perdidos, texto e direção de Pedro Brício, é pensá-las a partir de uma série de tensões, relacionadas a instabilidades ou impossibilidades de certas situações engendrados pelo autor, tanto na esfera ficcional quanto na esfera da criação.

No início da peça, os atores Branca Messina (Simone/Ludmila), João Velho (Marcos), Lúcia Bronstein (Mariana) e Pedro Henrique Monteiro (João) entram em cena e caminham em direção a uma fila de cadeiras colocada de frente para o público. Cabe a Branca Messina segurar o que parece ser o texto do espetáculo e enunciar as supostas rubricas. Ao iniciar a leitura, o espectador tem a possibilidade de coletar os dados das características físicas e psicológicas dos personagens e criar conexões imaginárias com o que é dito pelos atores. O fio condutor da trama gira em torno dos desencontros de um triângulo amoroso, formado por Marcos, Mariana e João, que se reúnem anualmente na noite de Natal. A cada encontro, um deles, Marcos, surge com uma namorada nova (Simone/Ludmila). Acompanhamos o desenrolar de suas vidas sentimentais e os conflitos gerados pela vulnerabilidade que o cotidiano lhes reserva, como a surpresa de uma demissão inesperada, a notícia de uma gravidez, as expectativas de se dar bem durante uma viagem ao exterior, a obrigação de ser sempre o melhor na esfera profissional e uma sensação de vazio quando as expectativas de uma possível vida em comum se frustram.

Antes, porém, que os atores decidam sobre quais identidades irão assumir ao longo da representação, há, nesse primeiro tempo, uma espécie de brincadeira com as máscaras de cada um dos personagens, uma espécie de confusão propositalmente forjada pelo autor, que não nos esclarece inicialmente qual é a situação cênica concreta. Exemplo desta passagem é o momento em que Lúcia Bronstein e João Velho invertem as falas, ela dizendo o texto que seria do personagem de João e vice-versa. Essa oscilação inicial para a qual chamo atenção remete a uma das questões que pretendo discutir nesta crítica. Percebe-se, por um lado, um procedimento de criação em que as definições sobre quem são aqueles sujeitos se mostram meio turvadas por variações de uma narrativa que joga o tempo todo com a linguagem metateatral. Para começar, o discurso dos personagens está recheado de alusões ao fazer dramatúrgico. É como se, o tempo todo, eles estivessem conduzindo a intimidade das relações pessoais, estruturadas como num grande roteiro, como se estivessem criando, cenicamente, no espaço de atuação, o próprio espetáculo de suas vidas. É possível sair um pouco da esfera da ficção e pensar que nós também fazemos isso na vida real: pensar nas situações vivenciadas, no cotidiano, como se fossem resultados de uma criação artística, com graus variados de lirismo e poesia na concepção dos fatos mais árduos e mais dolorosos da nossa existência. Pensar numa trilha sonora estritamente subjetiva, que consiga materializar sensações e atmosferas de uma dramaticidade mais pungente, no ápice do desespero, da amargura ou da felicidade. No caso dos personagens, a escolhida pelo casal João e Mariana foi Le Tourbillon de La Vie, na voz de Jeanne Morreau, referência ao filme Jules e Jim, que o citado casal assistiu por dezoito vezes.

Lúcia Bronstein e João Velho. Foto: Dalton Valério.

Por outro lado, a unidade de tempo também é problematizada no encadeamento da ação, quando os personagens discutem a ordenação em que as cenas poderiam ser mostradas. O fragmento em que Marcos lê uma carta para Mariana dizendo o que sente, depois que ela terminou com seu amigo João, é apresentada no início da representação – cena que poderia existir se pensássemos numa continuação imaginária do espetáculo, depois do fim. Detecta-se uma liberdade na arquitetura textual que incide sobre a manipulação do tempo, a antecipação ou retrocesso de situações numa ordem quase aleatória, como, por exemplo, na decisão dos amigos em fechar o primeiro ato com a cena em que Marcos apresenta Mariana a João em frente ao cinema, situação inserida no tempo passado.

Há também um deboche com certos pressupostos do teatro contemporâneo. Em algum momento, Marcos sugere que os personagens não tenham nomes e que sejam identificados por códigos que lembram elementos matemáticos (x, y) ou por dêiticos (ele, ela). Ou seja, enquanto tentamos criar conexões entre o que vemos e o que entendemos daquilo que nos é apresentado, detectamos, no texto falado, a tematização da linguagem teatral, os mecanismos que engendram as regras da escrita autoral, expostos em sua concretude cênica, na materialidade da dramaturgia. Na esfera das emoções e sentimentos emanados pelos protagonistas, uma questão fica patente no texto de Brício. O autor situa as suas criaturas num cenário de instabilidade total, tanto na esfera das relações amorosas quanto nas relações sociais e no aspecto narrativo da trama. Numa situação pontual, somos testemunhas de um certo esforço que Marcos e João empreendem ao tentar narrar um instante particular de suas vidas, sem que consigam finalizar suas descrições com sucesso. Esbarram numa impossibilidade de prosseguir adiante com o relato. Há uma perturbação nesse caso que é própria do conflito entre os gêneros narrativo e dramático. A narração prevê uma contação de histórias, de fatos ficcionais (ou não) ocorridos no passado, enquanto o fato teatral seria algo que acontece no instante presente do acontecimento cênico, no “aqui e agora” das relações de enfrentamento de personagens com seus algozes (assim como dos atores com o público) até o desfecho da ação. O conflito, nesse caso, pode ser indicado pelo víeis da impossibilidade de manifestação de qualquer discurso por causa da imbricação entre relatar e viver tal relato. Enquanto Marcos, no segundo ato, se dirige para o público e assume que não terá condições de seguir sua narração adiante, João atribui para si a total impotência de executar qualquer ato através do relato. Há uma impossibilidade de narrar aquilo que nem ainda foi vivenciado na ficção.

Um segundo momento de instabilidade pode ser detectado no confronto das relações individuais. Aqueles personagens são sujeitos prestes a completar trinta anos. Estão começando a sedimentar suas carreiras. O reflexo emocional dos indivíduos se reflete na vida social dos mesmos: o ator, que está inseguro por não se sentir bom o suficiente naquilo que faz e que, por isso, busca sempre o preciosismo; o publicitário que é demitido do emprego e que achava que nunca passaria por essa situação; a cineasta que viaja para o exterior para ver seu filme sendo aplaudido em um festival de cinema, e, por fim, aquela que tem o namoro terminado por um motivo, digamos, banal. Na cena em que Mariana volta do estrangeiro, Marcos e João a esperam ansiosamente no aeroporto. Querem curtir o momento do retorno sozinhos. Ludmila, a segunda namorada de Marcos, não pertence àquele grupo, não tem laços profundos de amizade, nem parece que conviveu com eles o bastante. Ela foi a única que, usando um termo mais coloquial, “sobrou” na relação entre os dois.

O que interessa pontuar nessa crítica é que o autor poderia simplesmente se decidir por escrever um drama em que a interação entre os personagens, assim como as referentes situações ficcionais, fossem pautadas por convenções que recorressem a clichês nas cenas do casal romântico. Não é o caso de Trabalhos de amores quase perdidos. Há um pensamento no modo de contar a história que é refinado e que não deixa o espectador ser sugado pela fábula bem contada.

Informações sobre temporadas na página da peça no Facebook: http://www.facebook.com/trabalhosdeamores

Pedro Allonso é ator e bacharel em Artes Cênicas, com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.


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