O funeral de Marina Abramović

Estudo sobre o espetáculo The Life and Death of Marina Abramović de Robert Wilson

31 de agosto de 2011 Estudos

Le génie, c’est l’enfance retrouvée.
(O gênio é somente a infância redescoberta)
Charles Baudelaire

Quatro anos atrás, Marina Abramović telefonou ao encenador Robert Wilson para lhe perguntar se ele poderia levar à cena sua morte. No entanto, ele afirmou que “somente se eu puder também levar à cena sua vida…” Em seguida, em novembro de 2010, Marina declarou, num jantar comemorativo de seus sessenta e três anos, que Antony Hegarty, do grupo Antony and The Johnsons, cantaria a música My Way em seu funeral. Com isso, ela emenda, em seu discurso, como será sua performance de despedida. Três cidades estarão na mira do destino da artista performática: Amsterdam, Belgrado e Nova York. Em cada cidade, haverá um caixão e quem comparecer ao funeral deverá estar trajando roupas coloridas. “Ninguém saberá”, diz Marina, “em qual deles estará o verdadeiro cadáver”, ou seja, somente em um caixão estará o verdadeiro corpo e, nos outros, estarão imitações da artista (1).

Assim, inicia-se a peça de Wilson. Três caixões com três mulheres mascaradas no centro do palco. Vemos, nesse prólogo, uma imagem perfeitamente retratada da performance que, no futuro, dar-se-á na despedida do mundo por Abramović. O espectador, ao entrar na sala, se depara com estes três caixões dispostos paralelamente, ladeados por ossos com a movimentação de três cães magros emoldurados por uma cortina – classicamente teatral – acoplada na cena frontal. É o convite ideal para entrarmos no mundo dos mortos através da presença metafórica dos três cães na representação do personagem mitológico Cérbero. Aqui, eles guardam o início do espetáculo, no qual veremos de forma fragmentária e por meio de flashbacks, a vida de Marina Abramović. Também podemos associar o número três dos elementos iniciais de cena às três etapas do percurso humano (a infância/adolescência, a vida adulta e a velhice), que, por exemplo, encontramos retratadas na pintura Three Ages of Woman and Death, de Hans Baldung Grien (1510). Outra imagem que podemos destacar como referência, através da presença dos cães magros e dos ossos, é o trabalho da própria Abramović na performance Balkan Baroque (1997), em que a performer lavava 1500 ossos frescos de vaca cantando canções da sua infância durante cerca de quatro dias.

The Life and Death of Marina Abramović inclui, possivelmente, a perspicaz visão do encenador Robert Wilson pela vida de Marina, quando alguns acontecimentos na vida de ambos assemelham-se de forma aparentemente dolorosa. Wilson, que teve dislexia e que foi gago na infância, teve somente um amigo, um rapaz negro chamado Leroy, sendo que, nesse período, o racismo era exacerbado nos EUA. O encenador relatou ainda a presença de uma mulher marcante, com fortes sentimentos, mas que não os exprimia em sua vida. Esta mulher foi Loree Wilson, sua mãe, que era uma mulher inteligente, bela, distante e fria, e que falava pouco, conforme declara Wilson no documentário Absolute Wilson: The Biography de Katharina Otto-Bernstein. Já Abramović teve uma mãe abusiva e sofria por possuir um enorme nariz. “Eu tinha doze anos e era obcecada pelo nariz da Brigitte Bardot”, narra a artista, que enfiou as fotos de Bardot no bolso e, em seguida, jogou-se de cara da cama de seus pais, com a esperança de quebrar seu próprio nariz para ganhar um “novo”, através de uma cirurgia plástica. “Em vez disso, na beira da cama, me cortei muito e todas as fotos de Brigitte Bardot caíram do meu bolso. Minha mãe veio e me deu um tapa no rosto”. A relação mãe/filha é o foco principal da dramaturgia sobre a vida da artista neste espetáculo. Encontramos, na narração feita pelo enlouquecido personagem à la fantoche expressionista de energia pura de Willem Dafoe ou pelas interpretações levadas em cena da biografia de Abramović, a presença da mãe nos Quadros agradáveis (1946 – 1966), Sua história, meu caminho (Kneeplay I – capítulo: A história da máquina de lavar), em Cinzeiro (1967 – 1974) (Kneeplay II – capítulo: A história do grande nariz) e na Lista da mãe (Kneeplay III – capítulos: A história do sapato polonês, A história sobre o hospital, A história sobre a mãe e o pai dela, em Cozinhar o espírito, A história da roleta russa e em A árvore da maçã verde). Nessas divisões, Marina dá vida à sua mãe, quando surge trajada com um belo e longo vestido preto e com o cabelo que, inevitavelmente, remete-nos à personagem da rainha-madrasta de Branca de Neve. Contracenando com Marina-mãe, alguns atores encontram-se vestidos nessas cenas com roupas infantis que aludem à Minnie Mouse.

Acontecimentos como o rompimento da nova máquina de lavar roupa ou mesmo da tentativa de quebrar seu próprio nariz, fazem com que a performer vivencie, através da repetição da sua personagem, o ato de dar o tapa na criança, algo que, na realidade, sua mãe havia feito com ela. Outros fatos, como Marina passando uma temporada de um ano num hospital por ser diagnosticada, erroneamente, como hemofílica, ou ainda, por ter coberto as paredes de seu quarto com graxa marrom para sapato polonês com o intuito de fazer aquilo parecer fezes, com a finalidade de espantar as diárias invasões de sua mãe ao seu quarto, ou o fato radical de que os seus pais dormiam, diariamente, com pistolas debaixo de seus travesseiros e o episódio de seu pai ter abandonado a família são levados à cena nesse espetáculo de Wilson.

A encenadora e performer sérvia Sanja Mitrović questiona, na sua mais recente criação, A Short History of Crying, os mecanismos sociais e culturais ligados à exibição pública das emoções. Confrontando testemunhos pessoais com cenas icônicas da cultura contemporânea e apresentando o material resultante de uma viagem de pesquisa pelos Bálcãs e pelos Países Baixos, esta stand-up tragedy examina o modo como as emoções se manifestam em diferentes situações e as razões que nos levam a exprimi-las publicamente. Indiretamente, Sanja menciona que o artista deve se dirigir ao norte da América para obter sucesso através de suas lágrimas, como fez Marina Abramović para ganhar reconhecimento em seus trabalhos no âmbito da performance art nos Estados Unidos. Portanto, diferentemente da crítica de Mitrović, aqui, temos que tomar um extremo cuidado para não confundirmos as criticadas “lágrimas” de Marina Abramović, pois, neste espetáculo, quem as derrama não é a artista performática, mas o encenador Robert Wilson em sua concepção. Muitas pessoas julgaram o narcisismo levado à cena pelo encenador norte-americano nas cenas de seu espetáculo, onde se concentram acontecimentos íntimos da biografia da artista. Em pouquíssimos momentos, curtos trechos das videoperformances da artista retratada são postos em cena por uma projeção ao lado esquerdo da visão do espectador para conectar uma cena à outra e/ou situar a vida e a obra da artista.

Muitos acreditavam que essa “ópera” pudesse ser um evento teatral de destaque para a década, pois foi concebido e encenado por Robert Wilson, com participações da própria Marina Abramović – um dos mais importantes nomes ligados à arte da performance –, do ator estadunidense Willem Dafoe (protagonista de Anticristo de Lars Von Trier) e do cantor Antony Hegarty. The Life and Death of Marina Abramović integrou a programação do Manchester International Festival 2011 (MIF) e foi apresentado no teatro do complexo The Lowry, que também abarca galerias para exposição, restaurante e café/bar. Por ironia do destino, havia uma exposição temporária intitulada Warhol and The Diva no The Lowry. Certamente, Andy adoraria retratar em suas polaroides essa diva da performance art, que recentemente posou de braços abertos para o jornal The New York Times, exibindo-se na sessão Home & Garden a sua mais recente aquisição imobiliária no SoHo em Nova York (2). Warhol, se estivesse vivo, com seu intenso amor pelos hábitos tipicamente americanos e capitalistas, poderia idolatrar essa fase de celebridade de Marina Abramović, que tanto contradiz sua inicial ideologia.

Da infância, na antiga Iugoslávia, Marina comenta: “Eu venho de um país comunista (…) a estrela está na minha certidão de nascimento e em todos os livros da escola. Elas me fazem lembrar das restrições da liberdade”. Seguindo este preceito, nota-se que, na cena inicial, ao fundo, do lado esquerdo do palco, o símbolo do comunismo está caído. Isso só é possível observar caso o espectador esteja na plateia superior do teatro. Este elemento ganhará vida quando a infância de Abramović for abordada em cena. Posteriormente, alguns objetos compõem uma noite cênica, na qual, primeiramente, sobe a mencionada estrela, depois, uma lua e, por fim, um machado. Um a um, até que o símbolo do comunismo possa ser contemplado ao fundo, fazendo alusão ao crepúsculo. Não é de agora que vemos o símbolo do comunismo presente na vida e na obra de Marina. Por exemplo, em 2005, ela realizou uma obra intensamente discutida, Seven Easy Pieces, na qual recriou performances clássicas de outros artistas performáticos, além da (re)performance de sua famigerada estrela da obra Lips of Thomas de 1975. Além disso, a planta da sua casa de campo, em Malden Bridge (Nova York), tem forma de estrela. Provavelmente, Peter Davies, em Super Star Fucker – Andy Warhol Text Painting, faria o mesmo com esta nova Abramović, que hoje é cultuada como uma celebridade pop e não mais como uma artista radical. Seus quadros de texto incluem nomes de artistas em série. Nessa obra, o nome de Warhol começou no centro e, durante o processo, o resto surgiu como um fluxograma, no qual Davies evita repetir qualquer frase na cor ou na forma da estrela, bem como na transmissão de uma má sensação para o observador. Ele retribui: “Eu quero fazer pinturas que combinam a sensualidade e beleza do formalismo com o humor e a tenacidade do conceitualismo” (3). Assim, vemos a estrela representada na vida e na obra de Marina Abramović nesse espetáculo de Wilson da forma como Davies combina os elementos mencionados em sua obra.

Outras várias estrelas cadentes, que Wilson colheu para o espetáculo, merecem total destaque por seus desempenhos em cena. Entre elas estão: os performers Carlos Soto, Svetlana Spajić e Willem Dafoe, o grupo musical Svetlana Spajić Group formado por Minja Nikolić, Zorona Bantić e Dragana Tomić, e, em especial, Antony Hegarty, que emocionou a plateia a cada vez que entrava em cena vestido com uma armadura, que o fazia parecer uma mistura de Brunilda, Percival e Rainha da Noite. O artista foi extremamente ovacionado. Além de “performar”, Antony também foi responsável pela direção musical, composição e letras do espetáculo de Wilson. O leitmotif da sua criação resultou em onze canções. Após o intervalo, o espetáculo se divide nos seguintes capítulos: Encontrando o homem (1975 – 1988) (Kneeplay IV – capítulos: A grande muralha, Mentiras, mentiras, mentiras (1989 – 2010) e A pequena casa) e Matando ratos (Kneeplay V). Por fim, o epílogo, que se chama Funeral.

Entre 1975 e 1988, o trabalho de Marina Abramović com a colaboração do ex-marido e artista alemão Ulay (Frank Uwe Laysiepen) é mencionado de passagem na peça, porém, o artista não é nomeado pelo narrador Willem Dafoe, nas suas leituras sobre os episódios da vida da artista, retratados por jornais de forma anacrônica. Nesse caso, não existe em cena nenhum performer representando esse artista, que foi fundamental para a carreira de Abramović. De forma proposital, por respeito ao artista vivo, ou omissa, por outros motivos, a sua ausência faz com que os mais leigos sequer identifiquem o papel fulcral de Ulay na obra de Abramović.

Em cena, numa visão clara, a batalha da dissipação da Iugoslávia é desenvolvida sob as referências das pinturas macabras do artista alemão Otto Dix. Também, a famosa obra Napoleão no Passo de Saint-Bernard, de Jacques-Louis David (1801) é nitidamente retomada na entrada de Abramović, que surge montada num cavalo de madeira gigante no front, sob canções do Svetlana Spajić Group. Esse mesmo animal figurativo faz alusão ao cavalo de Tróia, outrora usado pelos gregos para que seu exército pudesse entrar na cidade sem ter de passar pela muralha que a protegia. Aqui, Marina representa um general que ultrapassa a guerra para alcançar o seu êxito. Provavelmente, essa travessia da artista montada num cavalo de madeira em meio à guerra dialoga com o fato de que ela atravessou a fronteira do seu país para, então, tornar possível o que ela hoje representa nas artes visuais.

Após a guerra, surge Abramović deitada, trajando um belíssimo vestido vermelho sobre um suporte que se assemelha a uma pequena casa de bonecas. Do seu lado, em pé, encontra-se o narrador, cantando Willem’s Song. Nesse momento, um efeito cênico que conduz o espectador a elevar-se aos céus para prestigiar a glória da luta vivida pela artista faz com que esse mesmo efeito assemelhe-se ao sublime, uma das características do Romantismo, na sua grandiosidade que causa espanto, horror e admiração no estado da alma. Esta cena nos direciona para O viajante sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich (1818).

Antes do epílogo, o narrador no Kneeplay VMatando ratos – explica o método escandinavo de matar esses roedores. Segundo ele, numa caixa com vários desses animais, é normal que haja, entre eles, um mais forte. Pega-se, então, este que se sobressai com relação aos outros e se faz com que ele fique cego. Depois disso, deve-se devolvê-lo para o interior da caixa. Ele terá que se adaptar, mas os outros o matarão antes. Assim, o fio condutor nos direciona para o final do espetáculo, que se concretiza com o funeral da artista performática.

“O funeral você pode decidir”, diz Marina Abramović alegremente. “A morte não”. Sendo assim, ela observa a encenação de seu próprio funeral de maneira relativamente fácil de se materializar. No espetáculo, a composição do final triunfal sugere imagens dos ícones cristãos ortodoxos, porém, ao invés de estarem presentes num fundo composto por folhas de ouro, aqui, as personagens se encontram isoladas na luz, em andores que ecoam em suas formas negras sobre os ícones da Natividade e da Ressurreição. Ressonâncias religiosas tornam-se mais explícitas com o aparecimento de anjos pairando sobre o palco e, também, na letra da canção escrita por Antony – Why must you suffer / Like Christ for his Father? Com explícita referência à hagiografia, essa cena coloca a ascensão transcendental de Marina Abramović e de suas duas réplicas com vestes brancas em alusão à sua performance de despedida.

Abramović declara: “Acredito que o artista tem uma obrigação com a sociedade. Eu ‘performo’ situações com coisas desagradáveis diante da plateia, assim eles podem refletir, através de mim, sobre seus próprios medos e ansiedades”. No entanto, seu discurso entra em conflito com o orçamento da luxuosa produção de Robert Wilson. Foi levantado meio milhão de libras para essa encenação ocorrer durante seis dias no Manchester International Festival 2011 (MIF). Sem falar no preço do ingresso (£39.50, ou aproximadamente R$99). Por fim, observando a euforia dos aplausos do público, me questionei, ao observar a reação da diva da performance art: “Ela se renderia ao apático aplauso final em detrimento da sua verdade com a arte?” Eis que me surge uma pergunta que só o futuro pode esclarecer.

Notas:

(1) Performance registrada no prefácio do livro When Marina Abramović Dies de James Westcott.

(2) No dia 3 de março de 2010, no The New York Times é publicado na sessão Home & Garden uma reportagem intitulado por Sets for the Artist Marina Abramovic’s Dramatic Life. (http://www.nytimes.com/2010/03/04/garden/04location.html).

(3) Citação retirada do site: http://www.liverpoolmuseums.org.uk/walker/collections/20c/davies.aspx .

Paulo Aureliano da Mata (Inhumas – GO, Brasil. 1987) é fotógrafo, membro fundador, artista performático e produtor da CIA.EXCESSOS, e historiador da arte. Atualmente, estuda História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em Portugal.

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