Espectros de Mozart

Crítica da peça A história do homem que ouve Mozart e da moça do lado que escuta o homem

23 de abril de 2011 Críticas
Atores: Adriana Zattar e Roberto Birindelli. Fotos: Lina Sumizono.

Em cartaz no SESC Tijuca até o dia 1 de maio, A história do homem que ouve Mozart e da moça do lado que escuta o homem é uma peça que, ao escolher uma estética da crueldade, compartilha o desequilíbrio. Quando o diretor Luiz Antônio Rocha decide pôr em jogo as fragilidades privadas de forma crua, ele apazigua as inquietantes tentativas de homogeneização da normalidade como padrão de referência, tanto estética como eticamente. O que ele oferece é uma pequena revolução íntima, ao estilo da proposta de Antonin Artaud com seu Teatro da Crueldade. É preciso estabelecer desde já que o que parece aos olhos apolíneos uma tipificação pejorativa será para essa dramaturgia algo essencial e o estopim de uma conflagração subjetiva. Termos como crueldade, crueza e, mais à frente, desequilíbrio e deformação são o prenúncio de que algo novo será reconstruído sobre as carcaças dos personagens. A dinâmica positiva do Teatro da Crueldade é analisada no artigo publicado na edição de março de 2010, nesta revista – A noção de corpo sem órgãos em Artaud e no Teatro da Crueldade.

Logo na entrada, percebe-se a primeira linha de tensão da peça. Montada num espaço mínimo e escuro, por meio da sensação de clausura, todo e qualquer movimento cênico são retidos. São várias as fontes dessa força de ação centrípeta. As paredes negras, os olhares do público sentado ao redor do palco, uma moldura que detém o espaço de atuação dos atores, a pouca luz, tudo espreme os personagens, formulando uma pressão, coagindo as figuras dramáticas e dando-lhes o conflito eminente como única válvula de escape. As possibilidades de saída segura, porém, são minguadas e eles devem ter cautela para não simplesmente surtarem.

Todas as fontes de segurança vão sendo removidas pouco a pouco, os personagens, em queda livre, precisam começar a lutar para sobreviver. A tarefa da moça (Adriana Zattar), ou com o que ela se ocupa para viver, é restaurar bonecas velhas. Ela trabalha sobre uma mesa que parece um açougue de bonecas, com braços e pernas saindo pelas gavetas, com cabeças acumuladas e largadas umas por sobre as outras. Desmembradas, as bonecas dão vida a esse móvel-monstro, no qual rotos sonhos pueris adormecem. Um balcão de desilusões. Bonecas que foram postas fora, junto com a descoberta de que a inocência é um simulacro, o primeiro da vida. Buscar uma nova cabeça para sua boneca preferida dá algum sentido à vida da moça. As bonecas são sua companhia, no quarto escuro e sujo dessa pensão, são elas que mantêm – de forma insana – a estabilidade dos pensamentos da moça. Ela não tem mais onde se apoiar na vida, o nível de sanidade demandado pela sociedade depende da sua dedicação a esse trabalho, este é seu bastião da normalidade. O esforço para manter-se nessa linha de normalidade a puxa para o lado oposto ao que ela está caindo, e, aos poucos, esse conflito vai dilacerando e abrindo sua personalidade, expondo-a de forma cruel.

No quarto ao lado, que cenicamente coexiste com o quarto da moça, está o homem que ouve Mozart (Roberto Birindelli), agarrado à sua vitrola portátil e às suas lembranças atormentadoras. Desta vez, a força que puxa este personagem é uma força do tempo. Culpando-se por esfacelar sua família, ele carrega os fantasmas do passado como pesos amarrados aos pés, impedindo que toda tentativa de ir para frente se realize em sua vida. Cada novo aluno que consegue para ensinar literatura é espantado por sua tormenta psíquica. Sem condições, esse homem vaga como um fantasma, de pensão em pensão, vivendo sobre acúmulos de passados que ele mesmo não consegue discernir do instante presente.

Atriz: Adriana Zattar. Fotos: Lina Sumizono.

A situação decadente não é o interessante. É no desenrolar dos fatos escritos por Francis Ivanovich que os personagens descobrem o que é possível ser feito nessa fronteira. Os atores devem deixar suas próprias estabilidades de lado para que o teatro se volte a uma outra potencialidade, não-representativa. Eles devem assumir o risco de se manter desequilibrados e de ir mais fundo na dissolução das máscaras – ato que torna a cena expressiva num tempo presente, contagiando o espectador com a mesma força de reflexão sobre seus próprios parâmetros arbitrários de normalidade. Eles atuam num palco cheio de goteiras, o chão começa a ficar molhado e escorregadio. O homem, com os cadarços do sapato desamarrados, tem grande dificuldade de se manter de pé, ele tomba diversas vezes. Todos os pontos de estabilidade lhe escapam. Para tentar se firmar de pé, ele procura se apoiar em sua cama de campanha. Cada tentativa é frustrada; a cama não pode lhe oferecer estabilidade, ela também resvala devido à sua constituição frágil. Todo movimento para apoiar-se em algo é frustrado. Mesmo Mozart, que é sua grande referência, nunca é de fato ouvido. A moça, por sua vez, prefere se isolar e remediar a situação o quanto der. Ela evita o inevitável, eles estão afundando. Freneticamente, ela tenta em vão secar o chão com um pano encharcado. Cada vez mais a água inunda o palco. A preocupação dela é manter o que resta da aparência, manter um mínimo de respeito que vai sendo afogado.

A água causa grande empecilho para a atuação, o palco de madeira começa a flutuar, com as tábuas soltas, fica completamente instável. Um dispositivo que os impede de dominar por completo seus papeis. Mas eles não devem dominar: a lógica é inversa, quanto mais soltos estiverem, maior o grau de variação que alcançarão. Desejam-se variáveis pelo poder de ampliar uma estabilidade que não é sustentada pontualmente pela norma. O variável é volúvel e quanto mais mutável o personagem conseguir ser, mais dilatará seu contato com o solo liquefeito. É um embate entre atuar e afundar, entre apresentar e existir. Os personagens têm que se esforçar para continuar existindo de outra maneira, diferente da forma convencional, sem narrativa, sem início, meio e fim pré-determinados. Dessa imprevisibilidade é que pode nascer algo de novo. Sem ação estável eles compõem a peça por meio da expansão de seus sentimentos, expondo-se ao máximo, abrindo suas cabeças e deixando-se ver. Essa dilatação desfigura seus personagens, eles vão, metaforicamente, se liquefazendo e se tornando uma massa com o todo do palco afundado. Arrastando-se, o homem se confunde, está no limiar entre homem e verme: todos os lastros que defendem (definem) o homem (bípede, social, racional, bicho que ri, o que seja) são esfacelados e, sem deixar de ser homem, ele vislumbra ser verme, liquefeito em seu próprio corpo; numa relação livre consigo, numa massa inconstante. É dessa propriedade variante que vem a força de afirmação perante a vida, uma exalação de existência. Todo esse movimento fica óbvio diante do único encontro e diálogo direto entre os personagens, no qual a moça pergunta: – O senhor ia se matar?

Reconhecer-se sem apoios vai permitir que eles se amparem em si próprios. É nesse ponto que um grande espelho d’água se forma no palco, comungando uma univocidade para esses seres minorados de suas normalidades. Os reflexos obtidos nesse espelho, no entanto, são particularmente diferentes, não refletem personagens esgotados. Eles são, conceitualmente, como fantasmas, incontáveis e incontroláveis. Os múltiplos espectros não ficam mais enclaustrados. O homem e a moça, então, percebem que atrás de cada um de seus véus há outros infinitos, e nunca deixam desvelar um sujeito. Ocupam-se da tarefa de se reformularem diariamente: descobrem-se em processo intempestivo.

Ator: Roberto Birindelli. Fotos: Lina Sumizono.

Informações sobre temporadas no blog do Espaço Cênico: http://espacocenico.wordpress.com

Leia também o artigo de Humberto Giancristofaro sobre Antonin Artaud: http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/a-nocao-de-corpo-sem-orgaos-em-artaud-e-no-teatro-da-crueldade/

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, perquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

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