Relações passionais no íntimo familiar

Crítica da peça O Visitante, da Ruminar Cia. de Teatro, de Curitiba

17 de novembro de 2010 Críticas
Atrizes: Lia Machado e Kassandra Speltri. Foto: Mauricio Morais.

Por quase 40 anos, a obra dramatúrgica de Hilda Hilst permaneceu à sombra de sua prosa, esta sim frequentemente adaptada ao palco em montagens como O Caderno Cor de Rosa de Lori Lamby ou A Obscena Senhora D. Somente em 2008 foi lançada a reunião de suas peças completas, grande parte inédita: um incentivo a encená-las. Não surpreende, portanto, que a Ruminar Cia. de Teatro, de Curitiba, tenha se proposto a montar O Visitante, texto ímpar em uma obra teatral já toda singular.

Hilda se dedicou à literatura dramática apenas em um curto período entre 1967 e 1969, ano em que a produção numerosa e consistente de mulheres como Leilah Assunção e Consuelo de Castro afirmava, pela primeira vez, a dramaturgia de autoria feminina no país – mas Hilda se diferencia de suas contemporâneas por escapar ao teatro de costumes. Naquele momento, a tomada do palco como lugar de expressão sinalizava o crescente movimento feminino de apropriação do espaço público – para além da literatura, solitária e circunscrita ao ambiente privado – uma das principais bandeiras feministas.

Entre as peças que Hilda escreveu, O Visitante se desprega das causas coletivas em favor do indivíduo. É a única a tematizar diretamente a família, em sua rotina íntima, por meio de um conflito entre mãe e filha decorrente da suspeita de que o genro engravidou a sogra. As duas personagens femininas vivem a tensão entre seus desejos individuais e o padrão comportamental do modelo familiar, em uma família nuclear burguesa desestruturada e em crise por causa da ausência do pai, da erotização da mãe e da retração da filha.

As palavras proferidas estão no centro da encenação de O Visitante, submetidas à potência do trabalho de ator. Aposta-se na força poética e passional dos diálogos exaustivos, no poder sugestivo e misterioso de suas lacunas, e, sobretudo, no modo realista – enfatizando os sentimentos envolvidos – como são ditos pelos intérpretes. Na rubrica, Hilda recomenda de fato “pausas, cumplicidades nada evidentes, silêncios esticados”, que sugerem clima e ritmo à montagem além de fornecer pistas à sua compreensão – a questão da cumplicidade, aliás, se revelará uma das chaves da trama.

O realismo, no entanto, é frágil, uma vez que o drama está permeado por elementos desestabilizadores que concernem ao desconhecido – sagrado ou profano, dualidade fundamental na obra da autora. Fala-se em encontros delirantes com figuras cuja beleza disfarça a malignidade, em uma mulher desejosa de que lhe brotem flores nos pés, a própria aparição soturna de um corcunda pode ser lida como uma sugestão do fantasioso ou sobrenatural. Há na tessitura poética da escrita de Hilda Hilst a liberdade de contar o mundo metaforicamente, explorando esse território de superfície realista que comporta o oculto e o mistério.

Embora a mesa de refeição, principal objeto do cenário, seja das imagens mais reconhecíveis de um núcleo familiar, não se sabe quando ou onde a ação se passa, suspensa no tempo e no espaço a não ser por um índice de antiguidade indefinida nas roupas. Sem fincar margens como essas, ao imergir na intensidade emocional de personagens algo tipificados, a dramaturgia abre possibilidades criativas para o diretor criar soluções cênicas mais ousadas, alargando simbologias.

Atores: Kassandra Speltri e Orlando Brasil. Foto: Mauricio Morais.

João Petry experimenta acrescentar um prólogo, no qual mãe e filha, vestidas em camisolas brancas, brincam e correm, para que se estabeleça entre elas uma relação de pureza e afeto prévia ao confronto focalizado na peça. Na sequência, as atrizes se ocupam de montar o cenário. Contudo, uma torção no tornozelo da atriz Lia Machado impediu a realização da cena na temporada apresentada em Curitiba durante a Corrente Cultural, este mês, subtraindo da encenação essa camada de lirismo e desnudamento do fazer artístico. Sem isso, a personalidade da montagem aparece nos detalhes, sobretudo na música executada ao vivo por um violoncelista a acentuar o delineio sentimental do embate, mas também no figurino e nas flores pretas e vermelhas avistadas no cenário.

Ao dirigir os atores, Petry estabeleceu com nitidez espelhamentos e contrastes. Ao interpretar Ana – a mãe cuja culpa primeira é manter-se atraente e libidinosa sob uma casca de polidez social, sensatez e afeto maternal –, Kassandra Speltri confere à fala ritmo brando e calmo, baixo e lento, mas de suave sensualidade, enquanto seu porte é altivo. Tom e postura semelhantes delineiam o personagem do genro, seu amante suspeito. Por oposição, a revolta da filha Maria (Lia Machado) é representada desde a primeira fala de modo destemperado, rancoroso, violento. Curiosamente, o acaso interviu na ficção, e o fato de a atriz mancar, ao ser incorporado à cena (o espectador, afinal, ignora as circunstâncias), inscreve em seu corpo semelhante deformidade de aparência àquela que é a marca pessoal do visitante, um corcunda, inaugurando um paralelismo.

A companhia forja um ambiente íntimo e algo claustrofóbico ao tomar o cômodo de uma casa, sem janelas e com portas encobertas, e dispor no centro a mesa de madeira ao redor da qual a trama familiar se desenrola: um espaço de proximidade com as figuras humanas ali atuantes. A iluminação direta através de lâmpadas direcionadas a criar claros e sombras sublinha o jogo de verdades ocultas e reveladas proposto pelo texto. Os figurinos, contudo, vão além da reiteração: criam um sugestivo jogo de espelhos ao igualar as vestes dos dois homens e os vestidos das duas mulheres, dando materialidade à interpretação possível de serem duas facetas desmembradas do feminino e do masculino, em contraste ou complementariedade. Ao mesmo tempo, figurinos configuram pares opositores, ora dos homens frente às mulheres, ora de um casal frente ao outro, e, deste modo, contribuem para tornar visíveis em cena relações que o texto apenas sugere.

Em vista do momento histórico em que escreve Hilda Hilst, quando os movimentos feministas se fortaleciam, ainda que a dramaturga não se engaje, sua obra ganha um sentido político. Afirma a sexualidade feminina para além das opções reducionistas e dicotômicas da casta ou da promíscua, enquanto desvela silenciosamente papéis sexuais fixados a concepções ideológicas de poder e submissão. Entra em pauta também a violência, não necessariamente física, ao contrário, simbólica, de caráter emocional ou psicológico, exercida por uma mulher sobre a outra.

A limitação do universo feminino revela-se nas atividades que as personagens executam ao longo do dia, como tecer, cozinhar e arrumar a casa. O cotidiano aparentemente insosso, porém, o é apenas na superfície. Em profundidade, as relações dentro da casa são bastante mais complexas, ousadas e dramáticas. A traição entre mãe e filha é o grande rompimento com a domesticidade dócil desejada para a mulher no modelo patriarcal, uma ousadia em exercer a sexualidade passando por cima dos laços de família. Maria é presa desses laços parentais, está unida a Ana por relações consangüíneas transformadas em instituição social, não por afinidade ou afeição. O conflito “subterrâneo”, num contexto de domesticidade falsamente protetor, vem à tona com a chegada do visitante, o olhar de fora que deflagra o enfrentamento entre as duas mulheres. Até então, as duas vivem em função do mesmo representante masculino.

Uma vez que a linguagem simbólica de Hilda não se oferece à fácil decodificação, há de se apegar às imagens poéticas, sugeridas em falas com rimas internas, e nos vãos de insinuações, olhares e silêncios. Ao escrever para o teatro, a autora carrega consigo a poesia e o lirismo desenvolvidos em sua experiência literária anterior, e retoma questões de conteúdo, a exemplo do eu erótico feminino e do mistério da vida. A recriação da Ruminar ressalta a passionalidade, os afetos e ressentimentos, que tornam as relações familares, femininas e masculinas mais complexas.

Atores: Orlando Brasil, Lia Machado e Kassandra Speltri. Foto: Mauricio Morais.

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