Um outro o mesmo

Estudo sobre a noção de personagem intermédia no trabalho do encenador português João Brites

25 de abril de 2010 Estudos

“Mentir, o enunciar de coisas belas e falsas, é o verdadeiro fim da Arte”
Oscar Wilde, Intenções

Pretexto

Começamos a digressão em torno da noção de Personagem Intermédia por um breve pretexto, a própria noção de personagem, no sentido que João Brites atribui a um pretexto, “uma ideia que conduz à acção”.

A ideia da personagem como ser vivente modificou-se no teatro na viragem para o sec. XX. Se, até aí, o paradigma literário caracterizava a primazia da criação teatral, agitava-se então a passagem para um paradigma espectacular, que caracteriza ainda o teatro no recurso aos seus próprios meios e linguagens. Este questionamento do estatuto da personagem conduziu a estratégias diversas de representação dos modos de ser humano, da apresentação de personas e, sobretudo, das condições de ser outro, premissa fundamental da invenção e presença de personagens.

Comecemos por recordar a polémica questão do crítico inglês Charles Lamb (1) quando referia que as personagens de Shakespeare eram de tal forma perfeitas na sua condição literária que qualquer esforço da sua representação cénica anulava o poder sugestivo das suas presenças imateriais. A imagem teatral, como acontecimento, anulava a força das imagens literárias; a representação superficial das figuras impedia a incorporação profunda da dimensão humana das personagens. Este pensamento veio a influenciar Maeterlinck e Gordon Craig, anos mais tarde, que exploram a ideia desta inadequação da personagem literária à cena teatral, propondo mesmo a substituição do actor vivo por símiles e artifícios da sua presença. Do lado oposto da proposta Simbolista, também o Naturalismo sentia a necessidade da revisão das condições de criação e representação dos modos e formas de ser e estar. Mas a proposta naturalista, por Stanislavsky, sugere a criação de uma metodologia que permita ao actor um processo de construção das personagens. A ideia de construção, inédita até então, vai determinar o estatuto da personagem desde Stanislavsky até Grotowski, numa multiplicidade de exercícios e técnicas em função de um ou outro aspecto artístico, mas de um modo transversal a diversas linguagens estéticas. O exercício passa a complementar o processo de criação, complementando o ensaio. Esta noção científica dos processos, metodologias e fundamentação da personagem subsiste até hoje, vivendo um momento de experimentação em torno da sua condição ficcional e presencial, libertando-se do actor como corpo e extensão real da sua presença para projectar no espectador a construção da sua efemeridade, da sua fantasmagoria, do seu corpo etéreo. Os processos de construção de personagens referem-se à criação e organização de material afectivo e físico que possa contribuir para a mais eficaz representação de uma figura ou apresentação de uma presença, razão pela qual tendem a constituir momentos de pesquisa enquadrados num contexto onde a formação se torna pedagogia, isto é, transmissão de conhecimentos e experimentação.

Mas a condição fundamental para o aparecimento das personagens é o menor devir, a mais subtil abertura, o mais insensível deslize para um outro. Daí que, para questionar os processos de criação de personagens, parece ser necessário recuar a esse ponto, e daí desenvolver novas condições de ser outro. A personagem é, então, uma construção ficcional, comportamental ou afectiva a partir de um desvio primordial do modo de ser espontâneo do actor em direcção a um modo de ser outro.

Subtexto

Em 2002, João Brites deu-me a oportunidade de acompanhar um Seminário de Interpretação orientado por si na Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo por objectivo a sistematização do conjunto de exercícios em torno do tema da Consciência do Actor em que vinha trabalhando há vários anos e que, no contexto pedagógico, seriam valorizados por uma sistematização processual e verbal. Desse período resultou um Registo do Seminário de Interpretação (inédito) e desse conjunto fazem parte exercícios em torno de noções tão definidas como a de Presença, dos Três Planos de expressão e da Personagem Intermédia. O exercício da Presença visa exercitar a dimensão sensível da presença do actor em cena através do controlo do olhar, de subtis passagens expressivas ou da postura do corpo, em silêncio. Os Três Planos referem-se a três modos de expressão do actor: a corporalidade, a oralidade e a interioridade. Os exercícios de Três Planos consistem em séries de associações e dissociações de entre os três planos e numa graduação da intensidade de expressão, entre um grau zero, imperceptível a um grau dez, grotesco. A noção de Personagem Intermédia liga-se aos dois tipos de exercícios.

A personagem intermédia é uma presença recorrente nas diversas personagens desempenhadas pelo actor, um modo que lhe é particular enquanto pessoa e enquanto actor. Assim, a personagem é intermédia porque não é quotidiana mas ainda não é uma outra. Se, como vimos, a partir do grau dez a personagem se torna grotesca, no grau zero é ainda pouco particularizada, o que nos permite pensar que a personagem intermédia se encontra na base da construção de personagens. Nesse sentido também, o exercício da Presença, na subtileza das suas expressões é ainda uma manifestação da Personagem Intermédia, lutando por manter o interesse do espectador e a tensão da sua presença em cena.

O exercício da Personagem Intermédia consiste em dois momentos. No primeiro, cada um dos alunos-actores vai imitar o que julga ser a personagem intermédia de um dos colegas, considerando, sobretudo, o actor em cena e não só a pessoa no seu quotidiano. Os actores devem elaborar cenas improvisadas mas marcadas (com entradas, saídas, tempos, postura, direcção do olhar, relações com o espaço), individuais ou colectivas, sem interrupção, onde imitam aspectos recorrentes, técnicas de representação, personagens feitas pelo colega em causa. O nome do colega deve ser evitado e os actores devem fazer comentários na 1ª pessoa, durante a intervenção. No segundo momento, logo a seguir ao final das intervenções, o actor em causa elabora uma cena improvisada, individual, sobre a sua personagem intermédia, a partir do trabalho dos colegas, com comentários na 3ª pessoa.

Esta particularidade de deslocar a enunciação de si próprio e do outro nas pessoas opostas (represento o outro na 1ª pessoa e o outro representa-se a si próprio na 3ª pessoa) é um exemplo da deslocação que o exercício propõe. Esse deslocamento visa a uma consciência de cada actor da sua presença em cena e, sobretudo, das suas recorrências estilísticas, a partir da sua personalidade, do seu imaginário particular, do seu corpo. A consciência através de um olhar exterior serve um propósito pedagógico mas envolve-se ainda de importantes questões estéticas. De facto, trata-se de tentar identificar aquele preciso momento de desvio, a subtileza do primeiro instante de devir, em que um se torna outro. Deste modo, a Personagem Intermédia atravessa a pesquisa teatral de João Brites, desde o momento em que uma presença em cena se diferencia de si própria até à pesquisa dos modos de expressão das personagens, sobretudo através dos Três Planos. Pudemos observar a aplicação artística destes pressupostos num espectáculo recente d’o bando, O Salário dos Poetas, em que os actores mantinham uma personagem intermédia (2) ao longo do espectáculo para “vestirem” diversas personagens ao longo do espectáculo. Cada incorporação correspondia já a uma personagem definida, uma construção, modos de ser expressivos trabalhados em função da corporalidade, oralidade e interioridade.

Esta questão da interioridade tem colocado várias questões em relação à afinidade da pesquisa de João Brites com processos naturalistas, dos quais sempre se distanciou. De facto, o paralelo pode-se estabelecer a esse nível mas na associação com a experimentação de modos de expressão corporais e vocais que podem chegar ao grotesco, a questão da interioridade passa a ser projectada e contextualizada no paradigma estético d’o bando, marcadamente artificial, expressivo e extra-ordinário, mais próximo do trabalho de Meyerhold ou Fellini. Não está em causa a aparência, a verosimilhança, mas uma inverosimilhança convencional (3), uma forma de ser e estar que sem ser espontânea e real mantém-se como credível, presente, autónoma. Nas minhas palavras, personagens que são formas modais, são contínuos. Um exemplo é a forma como João Brites gosta de trabalhar os contrastes e que o leva, por exemplo, a associar uma questão neurobiológica ao processo teatral: onde, no processo naturalista, a memória determinava a expressão das emoções no corpo, aqui é o corpo que pode determinar estados emocionais (rir para ficar alegre e não convocar memórias para parecer alegre).

No Registo do Seminário de Interpretação há um momento em que João Brites se refere ao subtexto como sendo «algo que não é verbalizado ainda, as pessoas». E, mais do que animar personagens, são ainda as pessoas que importam. A estética teatral d’o bando, materializada em textos teóricos e nos seus espectáculos, tem vindo a reconhecer esse primeiro momento de desvio do actor, em que um se torna outro, explorando então a longa linha de desvio até à completa transfiguração do mesmo num semelhante, mas já diferente. E a não-verbalização é também a da pessoa que vê, do espectador que se reconhece no diferente, para quem o inverosímil se torna, ainda, veículo de reconhecimento.

Notas:

(1) Lamb, Charles; On the Tragedies of Shakespeare, considered with reference to their fitness for stage representation, publicado em 1911.

(2) O actor tem uma personagem intermédia ou várias personagens intermédias? Sendo que a Personagem Intermédia é um conjunto de recorrências que caracterizam um modo de ser e estar em cena, cada actor terá a sua “personagem intermédia”. O que não impede a modulação dessas recorrências num estado mínimo e subtil a que corresponde o grau zero na escala dos Três Planos e nos permita diversificar a mesma personagem/ presença em várias intermediações.

(3) Meyerhold recupera esta expressão a partir de Pouchkine, que a tinha utilizado para referir o carácter dual das personagens trágicas e que Meyerhold direcciona na sustentação do seu próprio pensamento sobre o grotesco. Cfr. Meyerhold, Vsevolod; Écrits sur le théâtre, Tome I (1891-1917), trad. Béatrice Picon-Vallin, Théâtre Annés Vinght : Th XX (col.), L’Age d’Homme – la Cité, (2001), p.192.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores