As muitas vozes que constituem aqueles dois

Crítica da peça Aqueles dois

26 de janeiro de 2010 Críticas
Foto: Paula Kossatz

Aqueles dois é um trabalho construído a partir de uma soma de vozes: Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves, Rômulo Braga e Zé Walter Albinati transportaram para a cena o conto homônimo de Caio Fernando Abreu como atores-criadores (apenas Albinati não está em cena) sem a presença de um diretor orquestrando a criação. Não por acaso, vários registros vocais sobressaem na montagem, sem que um exatamente se sobreponha sobre o outro.

Os atores da Cia. Luna Lunera parecem ter adotado como linha interpretativa uma naturalidade que cabe ser esmiuçada. Todos os quatro fazem Raul e Saul, os dois colegas que se tornam cada vez mais próximos em meio ao cotidiano viciado da repartição em que batem ponto. Transitando entre a interpretação e a narração, os atores, quando fazem os personagens, apresentam falas “verossímeis”, na medida em que não soam apenas decoradas, mas afetadas pelas interferências naturais do fluxo de pensamento, pelo instante imediato da evocação de referências e da produção de associações. São frases muitas vezes interrompidas para serem concluídas pelo interlocutor, frases que seriam totalmente descartáveis se não revelassem o extraordinário que pode surgir da banalidade – no caso, a construção de uma cumplicidade em contexto adverso. Há, nesse sentido, uma espessura entre aquilo que se gostaria de dizer e o que efetivamente se diz.

Nos momentos em que se afastam dos personagens e migram para o lugar da narração, os atores se relacionam de maneira mais direta com o público pela via do olhar e permanecem cúmplices de Raul e Saul, não aderindo, portanto, a uma postura de distanciamento mais tradicional. Em outros instantes ocorre uma espécie de jogo contrastante entre um registro vocal mais propositadamente desarmado (nas passagens em que os atores mesclam histórias pessoais à dramaturgia de Caio Fernando Abreu, lêem cartas escritas pelo autor e quando dedicam a apresentação da noite a um espectador específico) e uma composição assumida (no tom cômico que marca as intervenções ao microfone, de maneira a evidenciar a mediocridade dos funcionários da repartição).

A banda sonora de Aqueles dois também é constituída pela manipulação repetida dos diversos objetos de cena (máquinas de escrever, gavetas, discos) que ressaltam o dia a dia estéril de Raul e Saul na repartição e injetam um suave sopro nostálgico ao contextualizarem a história em décadas passadas. Na primeira metade do espetáculo, a “dramaturgia dos objetos” predomina, de modo a realçar a exasperação dos personagens na repartição. Quando os atores evidenciam, por meio da narração, que a cumplicidade entre Raul e Saul atingiu um estágio impossível de ser minimizado, despojam o espaço dos objetos. A ação principal migra do espaço público para o privado. Ainda assim, o espaço determinado como o de apresentação da história dos personagens permanece visto como repressor. Mesmo nos quartos de Raul e Saul a liberdade é vigiada. Não por acaso, os atores atravessam a fronteira do espaço cênico ao revelarem o desenlace de ambos ao final da apresentação.

Em todo caso, a passagem do público para o privado traz à tona os dois focos temáticos, obviamente interligados, de Caio Fernando Abreu em Aqueles dois: a pequenez do preconceito nas crescentes atitudes de repulsa dos funcionários em relação à amizade de Raul e Saul e a extensão do afeto nas relações masculinas, cujos limites costumam ser delimitados com rigidez por padrões culturais vigentes. O segundo foco é bem mais interessante e atual que o primeiro (ainda que o preconceito não esteja, de modo algum, extinto) e não há como deixar de pensar que o conto seria um mais que apropriado ponto de partida para abordar a questão.

Mas os atores não se limitam a ficar atados ao texto original. Basta dizer que Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Rômulo Braga não se enquadram nas descrições físicas estipuladas por Caio Fernando Abreu para Raul e Saul. Ao investirem nessa traição da imagem, quebram com uma certa idealização estética e ressaltam que aqueles dois poderiam ser quaisquer dois.

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