O espaço da narrativa

Crítica da peça A filha do teatro

20 de maio de 2009 Críticas
Atrizes: Fernanda Maia e Priscila Amorim. Foto: divulgação.

A filha do teatro, mais recente projeto do Teatro do Pequeno Gesto se dá a ver através de três pontos que considero importantes de serem debatidos a respeito da prática teatral em qualquer época e contexto: a dramaturgia que não se configura apenas como suporte, mas como acontecimento por si só, o espaço cindido da encenação e as funções atoriais. 

O texto conta a história de uma diretora de teatro que contrata uma garota de programa grávida para fazer uma cena de sexo explícito com seu parceiro em seu espetáculo teatral. A criança nasce prematura, de certa forma decorrente do tamanho envolvimento da mulher no espetáculo. A diretora resolve então adotar a criança e a mãe. A partir daí, a trama vai sendo tecida pela relação que se estabeleceu entre a diretora, a garota de programa e sua filha até o assassinato da primeira. O enredo é colocado perante o público através de diferentes perspectivas sobre as três mulheres inserir vírgula dados pelas atrizes (Fernanda Maia, Priscila Amorim e Viviana Rocha) na forma de monólogos que tem o objetivo de narrar a história e dar diferentes versões de um mesmo fato. Fica claro que a presente encenação pretendeu, como consta no programa da peça, mostrar-se como narrativa pura sobre esses fatos. A própria temática da história possui questões metateatrais em seu bojo, assim como o acontecimento que é experienciado em cena pelos espectadores é do âmbito da narrativa, que se concretiza através do discurso imagético e referencial da própria cena. 

O espaço da cena, com cenografia despojada de Dóris Rollemberg, não é convencional , o que poderia dificultar bastante o desempenho das atrizes, e a aproximação que se pretende com o público. Esse espaço, a meu ver, parece ser um fator importante para a questão da representação nessa empreitada metateatral da Companhia: o que vemos é uma ambientação que remete a um espaço de instalação, como se ao entrarmos tivéssemos a sensação de estar num espaço de artes plásticas (a sala é chamada de “galeria 2”) mas que vai tomando a dimensão de espaço da cena narrada. Esse lugar se divide em dois espaços de atuação, concomitante em vários momentos, e embora uma plateia (disposta em arquibancadas) fique de frente para a outra, a cena se separa por um pano onde são projetadas as imagens das atrizes no momento de narração, constituindo assim uma espécie de dois palcos frontais.  Enquanto uma atriz fala para determinada plateia, do outro lado sua imagem é projetada à outra plateia, imprimindo um desdobramento da ação. Esses mecanismos exigem muito do corpo da cena e do público. Visão que pode ir além da exposição, tornando-se um exercício árduo.   

No que se refere à atuação, o registro que se opera em cena em A filha do teatro é bastante oportuno para a discussão sobre até que ponto o ator vive o personagem e até onde ele o narra, o apresenta da forma mais distanciada possível e ao mesmo tempo “dono” daquela versão. De acordo com as próprias palavras do diretor Antônio Guedes: 

“(…) ele (o ator) não cria a ilusão de uma personalidade em cena, ele é mais um elemento narrativo através do qual a história se revela.” 

Por esse viés a proposta cênica apresenta o dispositivo ator dentro do jogo onde se estabelecem convenções, em busca de uma maior autenticidade na narração, num limite, que permeia a cena inteira, entre vestir o personagem ou apenas narrá-lo ao espectador da forma mais distanciada possível. Penso ser bastante relevante essa problematização que se propõe em cena, visto abarcar discussões caras ao teatro, como os limites da ficção, o lugar do ator e sua presença híbrida, que lhe exige uma naturalidade na fala, postura, ação e relação com espectador e com o que se conta. Acredito que esse intuito da encenação foi alcançado em grande parte do tempo, devido exatamente ao cuidado conferido pelas atrizes e direção em dar forma às propostas acima mencionadas. Talvez o andamento da narrativa tenha se tornado um pouco arrastado, apático em certas horas. Essa apatia que senti em alguns momentos decorre de um tom monocórdio que de certa forma permeia a peça inteira, fazendo a atenção desviar-se em alguns momentos da narração. Mas acredito que isso se evidencia devido ao teor da proposta. O lugar que aquelas atrizes ocupam na cena pode parecer algumas vezes extremamente vivo e em outras demasiado frio. É quando percebemos a pessoa do ator ali expondo a narrativa, e sua postura enquanto agente da ação que melhor visualizamos o enredo e sentimos as idéias e imagens propostas. Pude perceber isso ao flagrar-me envolvida pela história ali contada, no sentido de acompanhar a trajetória do conflito, assim como pelas imagens e sensações desdobradas pela narração. Há questões de natureza cênica expostas com devido cuidado e pesquisa, que visam novas propostas de olhar e atuar no espaço teatral.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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