Por que o mesmo? A possibilidade é o distanciamento

Crítica da peça Quase para sempre

10 de fevereiro de 2009 Críticas

Jogo de tabuleiro com a única amiga nas repetidas tardes apáticas de domingo, na cidade grande. Pode lembrar cena de filme, o capítulo de um livro, partes da própria vida, ou então, outra peça que você já viu ou ouviu falar em algum lugar. As personagens de Quase para sempre, de Bosco Brasil, são as velhas conhecidas pessoas que saíram do interior familiar para viver na capital anonimamente.

A solidão que não é opção, a solidão de quem não quer ser sozinho. É este o sentimento que torna vulneráveis as personagens, que permite a alguém querer ser amiga de quem aos poucos pode matá-la, ou, que permite a um oportunista querer ser amigo de sua presa. Um eco de todas as histórias de estranhos que se encontram casualmente em salas de espera de consultórios médicos, filas de banco, corredores de supermercados, ect. e que só precisam de um pretexto para se relacionarem, como, por exemplo, querer emagrecer (mesmo que não seja preciso). Daí para dar um telefonema, para tocar a campainha e ter mais um estranho na sua sala te ensinando a tomar pílulas para perder peso é só uma cena. E para este mesmo estranho ser outro participante do jogo de tabuleiro de domingos apáticos é um black-out, contra-regras que mudam a disposição de alguns móveis do cenário, aumento do número de peças do jogo, outra cena. Seria essa então a diferença desta montagem sobre os tipos emigrantes que um dia irão querer voltar para casa?

A direção de Roberto Souza opta por um tipo de distanciamento que se dá em rupturas que acontecem durante toda a encenação. As cenas são sempre anunciadas pelos títulos, ora por uma voz gravada, ora por uma menina que passa com uma placa, e contra-regras que alteram também o cenário nos intervalos de cada cena, aumentando sempre o tamanho das peças do jogo de tabuleiro. O que há de externo abafa a relação que se dá entre as personagens. A “menina da placa” se apresenta como que em um intervalo de uma luta, – com um figurino brilhoso e fazendo gestos extravagantes enquanto mostra ao público o que irá acontecer – fazendo do palco um ringue e anunciando o próximo round. O público passa a ser o personagem-público, aquele vizinho que você não sabe quem é direito, e que assiste tudo sem se envolver.

A interpretação também é um recurso de distanciamento. As personagens atuam no limite entre o humano e o mecânico. Fica estabelecer um envolvimento com a história, e não parece ser essa realmente a proposta. As personagens são desumanizadas porque falam sobre a solidão dos anônimos, sobre qualquer um. Lucila, uma das personagens, vai se tornando menos sensível, a cidade vai enrijecendo-a, e ao final, tenta chorar a doença da amiga e não consegue. Aparentemente o tema estaria esgarçado demais para que ainda fosse possível desvendá-lo mais um pouco. Sequer as personagens passam da superfície.

Então por que continuar falando de anônimos com saudade de casa? A direção, contudo, antes de buscar uma nova leitura para a “mesma história” parece evidenciar a decadência pela qual ela mesma passa. Mesmo quando a dramaturgia termina mudando o tom de domingo apático, de vida apática, para chavões dramáticos com falas exaltadas e grandes revelações, o distanciamento permanece, apenas invertido. Já não há como se envolver.  Afinal, Cássia, a pequena cidade do interior onde se anda de bicicleta na praça aos domingos e todo mundo se conhece, de onde vieram as amigas Lucila e Montserrat, pode não ter mais tanto significado. Porque nem todos pensam em um dia voltar para casa.

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