A antibailarina

Crítica da peça A bailarina de vermelho

10 de novembro de 2008 Críticas

Foi Chico Buarque e Edu Lobo quem escreveram “A Ciranda da Bailarina”. Aquela canção onde se lê que todo mundo tem ou teve: remela; sujo atrás da orelha; piolho; cheiro de creolina; casca de ferida e uma série de outras coisas. Todo mundo. Exceto a bailarina, enfatiza cada final de estrofe. A letra sintetiza algo que está latente no senso comum. De que a bailarina é esse ser diáfano, angelical, quase arquétipo da leveza, do frágil e de certa visão (parcial, como todo ponto de vista o é) do que seja o feminino.

Acerta em cheio Alessandra Colasanti, que dirige, escreve e atua em Anticlássico – desconferência e o enigma vazio ao causar o deslocamento, não o único do espetáculo, desse arquétipo, pintando-o de vermelho e vestindo-o de outros sentidos. A peça foi a atração de encerramento do Festival de Artes da cidade de Areia, na Paraíba.

Em cena, a Bailarina de Vermelho é auxiliada por um assistente chamado de Hamlet e interpretado pelo João Velho. Como nada nos discursos é por acaso, como nossa fala está cheia da fala dos outros; nada, sobretudo aqui nesta peça, é gratuito ou deslocado. Mas é bom ter calma. Se não conseguirmos abrir, caixa por caixa, dos signos e sentidos, ao menos vamos fazer parte do jogo de espelhos que é este espetáculo: uma verdadeira caixa de Pandora que ao, invés de proclamar nossas desgraças, ri de nossos impasses, da derrocada dos valores em relação à arte, do relativismo da diluição do gênero, de todo o carnaval que pode ser a pós-modernidade.

Ao utilizar os sufixos de negação “anti” (anticlássico) e “des” (desconferência), Alessandra está, ainda que na contramão, abordando a problemática do clássico, trazendo à cena muitas das implicações por que passa o termo hoje em dia, tudo isso com humor. O entendimento do clássico é trazido sob o viés, ou melhor, sob o filtro da ironia. Mesmo que se aponte para a desestabilização e a caricatura, Alessandra vai também e ao seu modo fazendo uma investigação, levantando hipóteses e, santa ironia, fazendo aquilo que a Bailarina pede: “duvidem, duvidem de mim, hãn”.

Por outro lado se a conferência molda-se numa plataforma que mais lembra um talk show, tem inclusive um pé no stand-up comedy, com seu cenário de poucos adereços e uma jogada metalingüística interessante, com a pintura de uma estante ao fundo e sua posterior projeção. Mas, não se deixem enganar pelo cômico. Alessandra não descuida do texto e, apesar do risível com o qual a personagem se mascara, não deixa de fazer, sim, uma conferência, mesmo que a estratégia seja ir pelos contrários.

Não é justo categorizar toda a dramaturgia do espetáculo como sendo um retalho de piadinhas sobre o mundo acadêmico. O texto, às vezes o filtro da ironia cega um pouco, é repleto de poesia; de poesia da melhor qualidade. Basta lembrar, dentre tantos momentos, a enumeração dos museus: “da transgressão”, “da novidade”. 

Na apresentação em Areia houve problemas. O local em que a peça foi apresentada, o auditório de um colégio, não dispunha de condições técnicas plenas para execução da luz; o recuo da primeira fileira criava um distanciamento prejudicial a uma intimidade maior com o público.

A utilização das projeções, com imagens do Louvre, ao mesmo tempo em que casou com a perspectiva do espetáculo, serviu para dar um respiro no texto. Aliás, há tanta metáfora, imagem, piada, sacadas inteligentes numa seqüência às vezes rápida, em alguns momentos frenética, que o peso das referências todas, como brinca a própria Bailarina, também chega até nós. Mas, nesse balé-“rave” de carnavalizações e polifonias é impossível não se lembrar de Drummond, que diz: “os ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança”

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