O trabalho de ir e vir

Crítica da peça Sísifo, parte da 9º Mostra Prática da UniRio

10 de setembro de 2008 Críticas

Em cartaz na 9º Mostra Prática da UniRio, Sísifo, sob direção da aluna-diretora Diana de Hollanda, contém o caráter de performance muito discutido e experimentado nesta universidade. É comum vermos alunos experimentando a atuação performática em seus exercícios cênicos pelo campus, com instalações que de certa forma ganham um caráter de cenografia no espaço, intervindo de maneira direta, para além dos palcos e salas. Esse trabalho faz a atualização dos acontecimentos cotidianos no tempo específico do teatro, o aqui e agora, substitui personagens dramaturgicamente “bem construídos” por performers, não separa espectador da cena.

O espaço da encenação, a tradicional Sala Cinza, ganha uma instalação concebida por Lia Farah: panos brancos e um chão claro formam uma espécie de labirinto com passagens entre ambientes, pequenos compartimentos contendo alguns poucos objetos como um computador, uma guitarra, um projetor, um boneco. Os ambientes que se formam são alvos, com uma luz branca que à medida que o tempo passa torna o local abafado.

O caráter performático fica evidente quando os atores vão entrando no espaço cênico, ocupando-o primeiro com seus corpos em conjunto, para logo em seguida cada um se dirigir a um ambiente do labirinto, e começar a executar individualmente um repertório de ações que se repetem ao longo do processo da peça. O público a partir desse momento vai escolhendo o caminho a percorrer. A ordem que ele vai dar na caminhada pelos corredores da instalação não é induzida, requer uma escolha primeiramente aleatória, para depois construir intuitivamente uma trilha.

Em cada partitura de ações executada pelos atores, a repetição é o foco evidente. Há uma atriz que executa sempre o mesmo acorde em uma guitarra estridente, saindo desse lugar a cada cinco minutos quando todos se encontram e juntam seus corpos no chão. Em seguida, eles voltam a realizar as ações com pequenas mudanças, que se verificam pela alteração do ritmo, que é crescente e determinado por alterações no som da guitarra ou nos grunhidos vocálicos.

A grande questão do trabalho, penso, é o processo de repetição das ações e os lugares sensoriais aos quais  ela pode levar os atores e espectadores. Os sons e cheiros  vão tomando novas dimensões a cada partitura de ações retomada, a cada passagem de um ambiente a outro na instalação. É nesse processo que recorro ao mito de Sísifo. Na mitologia grega, Sísifo era o mais esperto e astuto dos mortais. Ao desafiar os deuses, foi condenado por Zeus a passar o resto de sua vida cumprindo a tarefa de carregar uma pedra montanha acima e sempre que estivesse perto do cume a pedra rolaria ao ponto inicial recomeçando seu trabalho de levá-la montanha acima. Assim, o “trabalho de Sísifo” tornou-se uma tarefa inútil e sem fim, a eterna repetição de uma ação. É evidente a relação do mito com a cena proposta pela aluna diretora, já que os atores/performers e o público estão “condenados” a fazer e olhar sempre as mesmas atividades no espaço cênico. Tem-se a sensação, em certo ponto, de que o trabalho de Sísifo em cena não terá fim, a não ser com a saída do último espectador, que pode ocorrer tanto nos primeiros cinco minutos como depois de quatro, cinco horas de peça. Nesse caso, o que determina a duração do espetáculo é o pleno jogo entre atores e ações e espectadores e sensações desencadeada naquela relação.

Já sabemos que o teatro contemporâneo exige escolhas claras de ambos os lados, que a qualidade da presença de ator e espectador na cena é um fator preponderante e decisório. Que o texto dramático não é o centro do espetáculo, mas apenas um dos elementos que formam a cena. Que o texto que muitas vezes se destaca é aquele escrito pelos corpos em sua potência física no presente da ação. Que o papel desempenhado pelo ator nem sempre será o de um personagem “bem construído”, mas por vezes o de uma projeção de si próprio, onde sua presença física constrói a linha de suas ações e objetivos na encenação.

Nesse sentido, o trabalho de Diana de Hollanda pode ser visto como uma experiência teatral performática tanto pelo espaço cênico recodificado (a caixa preta ganha dimensão de instalação, forma das artes plásticas) quanto pelos atuadores, que claramente não montam personagens de forma naturalista, mas atuam diretamente no espaço sem disfarces, mostrando em maior ou menor grau, suas particularidades na presença física concreta. Em seu Dicionário de Teatro, Patrice Pavis caracteriza a performance pela “sua efemeridade e falta de acabamento da produção” (PAVIS, 2005: 284- 5) na qual a ênfase estaria mais no processo do que no produto final, na obra representada e acabada. Os performers, de acordo com Pavis, “realizam uma encenação de seu próprio eu, enquanto os atores fazem o papel de outro”, o que me faz projetar essas definições no espetáculo aqui analisado, pois me parece clara a opção por esse caminho de inacabamento e efemeridade em Sísifo.

Se pudermos atribuir uma função ao teatro e encontrar sua especificidade (questão crucial em tempos onde o produto artístico está submetido em grande escala às leis do mercado), essa função poderia ser disponibilizar o espaço teatral a uma disseminação de sentidos e sensações que se deslocam entre cena e público, promovendo o jogo lúdico do “aqui e agora” próprio desse fazer artístico.

 No trabalho de ir e vir de atores/performers e espectadores na instalação de Sísifo, a atualização do presente se faz nítida e notória, num ciclo que se repete à exaustão daqueles que jogam em cena transformando o espaço e o tempo determinado, explorando todas as suas possibilidades estéticas e sensoriais. Nessa peça, os corpos dilatam-se no espaço e cruzam-se, esbarram-se, empurram-se. O entrecruzamento de uma vida real cotidiana e uma vida esteticamente organizada desemboca em um acontecimento vital, que se dá ao mesmo tempo em que se emite e se recebe signos e sinais.

À medida que o tempo passa na encenação, um texto comum vai surgindo e tomando corpo. Ele é resultante da ação entre cena e platéia, onde estranhamente não há um diálogo, um discurso falado. Não há uma fábula, um enredo. E talvez nem se queira dizer “algo” como, inutilmente, esperamos da arte. Acredito que o intuito do espetáculo esteja fixado no desejo de reverberar sensações daqueles que atuam para aqueles que observam, fazendo do jogo um acontecimento real.

Há riscos. A experiência engendrada por Diana de Hollanda e seus atores é ousada e poderia até ser vista como pretensiosa. Mas acredito que não há teatro sem riscos, sem exposição da matéria humana. Desse modo, o espetáculo ganha força por ter uma escrita autoral de alguém que está buscando novas formas, que está testando. O lugar é propício: o espaço acadêmico deve ser o local da experimentação.

Referência bibliográfica:

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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