Sombra

Crítica escrita em setembro de 2007, quando o espetáculo Luto clandestino foi apresetado em Vale de Barris – Palmela. A peça faz parte da programação do FESTLIP

20 de junho de 2008 Críticas

Foto: divulgação.

Texto publicado originalmente na Revista Obscena, nº6, pp. 75,76

Vejamos Os vivos em linha com Morcegos (2006) e mesmo com Ensaio sobre a cegueira (2005). Em comum, a origem dialógica dos textos, que subsiste parcial ou completamente na adaptação dramatúrgica; a impressão da marca urbana, onde a estranheza e a excepção se instalam e progridem; a cenografia representativa, quase figurativa, onde, no entanto, se mantém o exercício de dramatografia de João Brites (uma visão dramatúrgica da cenografia, uma leitura cenográfica do texto).

José Saramago e, sobretudo, Jaime Rocha e Jacinto Lucas Pires partilham o modelo dialógico como estrutura literária de representação teatral e entres estes dois últimos, nos textos encenados pel’O Bando, encontramos ainda a coincidência do tema da família, da relação com um lado oculto e inominável (o medo em Morcegos, a morte em Os vivos), numa moldura urbana, habitada por personagens verosímeis. Ora nada mais estranho aos processos e ao imaginário que O Bando vem vindo a desenhar no horizonte teatral português.

Não deixa de ser curioso como, habitando na paisagem de Palmela, o perfil da grande cidade se tenha instalado nas suas temáticas; ou como as adaptações de textos narrativos e poéticos deram lugar ao diálogo, o que nos processos d’O Bando significa tentar associar a dramatografia com o dramático e, em última análise, substituir a dramaturgia do texto de cena (nalguns casos, textos que se destacavam como obras autónomas, exercícios de adaptação que se tornavam originais) pela causalidade do texto dramático. Por fim, o próprio estatuto das personagens fica em crise, algures entre a representação regular e verosímil a que o texto obriga e o desvio excêntrico e grotesco a que O Bando sujeitava a presença humana, conferindo-lhes teatralidade por esse excesso. Como contraponto a esta tendência surgiu O Salário dos Poetas, transpondo o conteúdo visceral e rancoroso do romance de Ricardo Guilherme Dicke para uma forma eficaz, cénica e plasticamente. É assim que já em Ensaio sobre a cegueira e, sobretudo, em Morcegos e Os Vivos se respira uma atmosfera diferente e, onde se ganha actualidade, algo de telúrico vai-se perdendo.

Esta análise não invalida que Os vivos sejam um bom espectáculo, animado por um texto muito interessante e encenado com sentido experimental e cuidado. O espectáculo é devedor de duas anteriores produções d’O Bando: Luto clandestino, peça em um acto de Jacinto Lucas Pires que veio a evoluir para Os vivos, passada em redor de uma Renault 4L num esquema de audio-walk; e Rumor Clandestino, um texto de Fernando Dacosta a partir de Agostinho da Silva, encenado por Gonçalo Amorim, também um audio-walk (com mais “walk”) entre um casal que se reencontra na rua.

Deste modo, a primeira parte de Os vivos é Luto clandestino e passa-se na estrada, onde duas personagens dialogam em redor da 4L. Percebemos que se trata da mãe de uma rapariga morta num acidente de automóvel – aquele automóvel – e o namorado da filha. Entre os dois vai desenvolver-se uma perversa relação íntima, de celebração da filha morta, ambos reencontrando no outro o amor perdido. A segunda parte do espectáculo é no espaço fechado de uma das casas e representa com transparências e intervalos o espaço fechado da casa da família da rapariga morta. Aqui vão habitar a mãe e o pai, a empregada, o namorado e a própria filha morta. Estes são os vivos, não por oposição à morte, mas os que sobreviveram à morte, os que estão depois. Daí que a presença do fantasma no mesmo plano destes vivos seja possível, porque também eles são moribundos. A presença da morte é, de todo o texto, o elemento mais conseguido, sobretudo pela forma como Lucas Pires associa a falta de vida à falta de linguagem. Morrer é deixar a história e com isso a possibilidade de comunicar. De onde, mesmo os que sobrevivem continuam no tempo mas afectados pela morte, com dificuldades em comunicar – como um susto provoca a gaguez -, de que são exemplo as óptimas composições do pai e da mãe (J.G.Miguel e Paula Só). A filha acabará por desaparecer, muda.

A utilização de dois dispositivos cénicos tão distintos como o audio-walk, onde actores e espectadores coexistem, e a cenografia da casa, que separa a cena a plateia, é superada pela contínua utilização dos headphones que permitem uma audição do tom baixo, da respiração e do sussurro dos actores. Esta intimidade estabelece um realismo contra o qual os actores constantemente lutam e que sinaliza uma das linhas de confronto entre duas tendências que parecem marcar presença nestes últimos trabalhos d’O Bando: a inegável qualidade e rigor das propostas mas como que descentrada da sua linguagem artística. Ironicamente, a condição dos mortos no diálogo de Lucas Pires aplica-se a Morcegos e Os vivos, colocando a questão sobre o diálogo entre duas linguagens artísticas no seu confronto, audio-walk e quarta parede, dramatografia e drama, o apelo do campo profundo e a superfície brilhante da cidade.

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