Identidade ou diversidade
Crítica da peça “O dragão”
Os conflitos do Oriente Médio já renderam milhares de páginas jornalísticas e literárias. Muito se confabulou sobre porque toda essa barbárie está acontecendo. No caso do conflito árabe-israelense, não é diferente. Porém, por mais colorida que a cena seja pintada, o motivo de tudo é um só: território. A terra prometida não tem petróleo, mas tem fronteiras com os principais países do Oriente Médio, controla a circulação de água potável do Rio Jordão e de portos marítimos do Mediterrâneo.
Começo esta crítica da peça O Dragão desta forma, pois acredito que esse é o principal tom que ecoa do trabalho da Amok Teatro. A peça assume um caráter político já na escolha do argumento, sem ser panfletária. Então utilizemos a política para compreender como a estética escolhida por Ana Teixeira ajuda seu texto a ser uma voz aceitável no quadro atual da humanidade.
Antes de assistir a peça, li a crítica da Barbara Heliodora, que conclui: “O dragão resulta, com tudo isso, em um grito lancinante, cujo objetivo é alertar a todos para o horror dessa guerra em que, em nome da religião, tantos crimes são cometidos, por um lado e por outro.” Essa é a opinião do senso comum, mas é contra esse senso comum que a peça luta. A religião é uma desculpa dos comandantes para que a guerra seja respeitada. Em cena, fica claro que a religião não tem nada a ver com isso. A religião institucionalizada sequer é mencionada, a referência dos personagens é sempre aos seus Estados Nacionais, Israel e Palestina, nunca à suas religiões, até porque nem só de judeus é composta Israel e muito menos de muçulmanos a Palestina, que possui cerca de oito religiões diferentes e uma notável comunidade cristã.
Outro comentário muito explorado para O Dragão é o suposto tom de imparcialidade da peça. Não acredito que ela seja imparcial, por todas as escolhas que foram feitas. Numa primeira impressão, o texto deixa evidente a preocupação em retratar a condição humana dos personagens, em que todos querem a paz. Mas o texto caiu na armadilha que está estabelecida em nossa cultura e se mostra tendencioso. A ação da peça gira em torno do atentado de Jenim, reclamado por um grupo radical árabe. Tudo bem: os dois lados perderam seus filhos. Mas quem matou foi o árabe terrorista, um clichê. Desde a queda do muro de Berlim o inimigo não é mais o loiro grandão, mas o moreno de nariz adunco e cabelos lisos. Porém, a pieguice do clichê não é uma unanimidade; para muitos o clichê é acalentador, a previsibilidade confortante. O clichê é usado para que as pessoas se suportem na vida social, para estabelecer o que está certo ou errado, é uma vigilância que sustenta os micropoderes. Mas a arte não é informação – funcionalidade do poder – então deve lutar contra os clichês. E cada vez mais uma má reputação atribuída ao povo árabe vem sendo fortemente injetada da política-econômica para nosso comportamento e cultura.
Existe uma leitura comprometida de que o oriente é o lugar da barbárie, fruto da lógica do choque de civilizações, que opõe o mundo livre ao eixo do mal, que impõe a democracia como valor e retrata o ocidente como racional e moderno e o oriente como inferior e fanático. Há uma relação de poder com a qual podemos criar a nossa identidade por oposição. A cena mais significativa contra esse discurso foi o entreato, no qual os atores trocam de figurino em cena na frente de espelhos. Com isso eles mostram que tanto faz qual é a sua roupa ritual, que o que acontece na terra sagrada também está acontecendo em todos os lugares, que as pessoas não lutam por ideologias, elas lutam por respeito.
O esforço para desfigurar sem descaracterizar assume um forte peso emocional, trazido pelos atores com a intenção de mostrar que árabes, israelenses ou o que forem, todos sentem as mesmas coisas. Choram quando perdem um filho, se desesperam quando suas casas são derrubadas, como todos os homens fazem. A batalha retratada na peça não é local, é do homem; onde quer que ele esteja. Esse ponto é que faz a peça ser atual mesmo tratando de um assunto sexagenário. É o mérito do texto que, sem fazer força, retrata uma realidade transnacional. Observamos a mesma discriminação com as favelas, subúrbios e párias que estão sempre tão perto de nós, que nos margeiam, determinam nossos limites e nossas identidades. Quando um ônibus é queimado aqui, ou uma chacina é feita em algum morro, são os mesmos sentimentos sofridos pelos povos do Oriente Médio com os problemas de lá; há uma universalidade na dor. A Amok não nos assusta ao mostrar o distante, ela surpreende por revelar uma proximidade.
Se as diferenças são solo fértil para a discriminação, há alguma coisa errada com a maneira de olhar para o outro. Se o objetivo é a paz, ela só será formada pela tolerância e respeito pela diversidade. Isto só ocorre quando a identidade se resguarda como valor particular; uma vez que o pensamento público de igualdade é a raiz do totalitarismo.
Na cena final, ambos estão aprisionados, um de cada lado do palco, separados entre si e daquilo pelo que lutam. Nem um nem outro já teve a experiência de pisar naquela terra com a sensação de pertencimento. Com o perigo sempre à espreita, as malas estão sempre prontas, guardadas no armário.