Quase nudez X expansão retórica

Estudo sobre o formato de peça curta a partir dos conceitos de punctum e studium segundo Roland Barthes

20 de março de 2008 Estudos

Se eu dissesse aqui simplesmente que o formato peça curta pode ser mais interessante para experimentar uma linguagem ou esboçar uma idéia não estaria dizendo nada demais. Entretanto, digo: pode ser mais interessante experimentar uma linguagem ou esboçar uma idéia em um texto curto do que tentar fazer isso num formato (de tempo) de peça adequado para uma apresentação convencional. Criar uma peça que tenha aproximadamente 90 minutos de duração é a forma padrão de transformar uma idéia de teatro em produto viável. Esta não é a forma mais adequada para toda e qualquer idéia. Mas a viabilidade e adequação ao mercado acabam sendo prioridades.

Me pergunto se é possível dizer que a peça curta é de natureza intervalar. Lembro das peças curtas de Martins Pena, pensadas neste formato devido à natureza intervalar da comédia na época em que ele começou a escrever – o lugar da comédia era o intervalo entre as peças “sérias”. As peças curtas de Beckett têm a sua comicidade – apesar do tratamento solene que o público dá a qualquer coisa que venha com o carimbo de “clássico”. De qualquer forma, colocar a peça curta no centro, no foco do evento – como no festival Resta pouco a dizer – já é sugerir uma reflexão sobre a sua forma e a forma da experimentação no teatro. Mas a experimentação é também de natureza intervalar no teatro carioca? E precisa estar validada por algum carimbo de “clássico” para conseguir seu espaço?

No cinema, o curta-metragem recebe alguma atenção. Pouca atenção, em circuitos pequenos. Mas há uma familiaridade com a idéia de curta-metragem. Há premiações para curtas. Eles entram nos currículos dos cineastas estreantes e são mencionados em matérias de jornal. Sem entender de produção de cinema, arrisco dizer que deve ser um procedimento comum que um diretor realize curtas antes de dirigir seu primeiro longa. Não que isso determine uma questão de evolução, há cineastas que preferem mesmo usar a linguagem de curta-metragem.

Talvez várias pessoas estejam fazendo peças curtas e eu não sei. Mas não se pode dizer que eu não tenha procurado. Os festivais, por exemplo, têm “Mostra de peças curtas”? Os espetáculos de formatura das universidades, ou até mesmo os espetáculos montados ao longo desses cursos, exploram este formato? Não sei, é uma pergunta. E faço essa pergunta porque experimentar uma linguagem, colocar em prática uma pesquisa, tendo que se adequar a um modo de produção padrão deve ser complicado. Lembro de poucas situações em que vi peças curtas: uma montagem de textos do Paul Auster por Ana Kfouri e uma leitura de peças do Newton Moreno no Drama Tempo.

Não só a presença das peças curtas de Beckett na temporada carioca me despertou este questionamento. No início de fevereiro deste ano, assisti Entropia, peça de Rodrigo Nogueira, no CCBB.  Depois da peça, tive a reação imediata de pensar que o texto teria se resolvido melhor como peça curta. Era possível ver que havia ali uma pesquisa de referências literárias e imagéticas, que havia uma idéia interessante, um lugar e uma atmosfera, uma suspensão. Mas a idéia me pareceu dissolvida no tempo da ação, como se a necessidade de preencher o tempo tivesse forçado a idéia a se construir como uma história. Como um drama.

Uma girafa de três pernas (para brincar com Beckett) fica em pé por vinte ou trinta minutos, mas não por duas horas. E se a sua natureza for essa mesmo… Que seja por vinte ou trinta minutos.

Hans-Thies Lehmann diz que, na função estética, há a capacidade de isolar o objeto ao qual a função estética se refere. E que “a possibilidade mais marcante do estético é a de produzir uma concentração máxima da atenção sobre um dado objeto.” (Cf. LEHMANN, Hans-Thies In: Teatro pós-dramático; 2007, 115) A peça curta não apenas permite, mas também implica uma concentração máxima. O desenvolvimento da idéia, do objeto que vai se dar através daquele texto ou cena, ganha naturalmente uma precisão. Escrever um texto curto demanda uma economia, um aproveitamento do tempo e uma condensação na forma que produzem, talvez, uma espécie de refinamento. Como se a necessidade de concisão formasse um filtro que sintetiza, que limpa a idéia de suas roupagens possíveis e faz com que ela se apresente praticamente nua.

Mas de que forma determinada idéia pode ter maior aderência à cena se expressa com economia?

A peça curta parece ter uma relação estreita com a fotografia. O filme La Jetée de Chris Marker deixou este traço no meu imaginário: um média-metragem feito apenas com imagens estáticas (com exceção de uma) descolou do filme o conceito de imagem em movimento, me fazendo pensar até que ponto tal conceito o define. Do mesmo modo, a peça curta pode descolar do teatro o conceito de ação no tempo – e fazer pensar o quanto isto o define. Mas a aproximação com a fotografia me vem à mente porque acho que na peça curta, o punctum prevalece sobre o studium.

Para jogar com estes conceitos, é necessário relembrar A câmara clara, último texto de Roland Barthes, publicado em 1980 na Cahiers du Cinema. Barthes se questionou sobre a fotografia, mas não de uma maneira geral: seu interesse era pensar a fotografia que o punge, que o anima. Aquilo que funda o seu interesse particular por certas fotos é uma co-presença destes dois elementos.

“O primeiro, visivelmente, é uma vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura. (…) Desse campo são feitas milhares de fotos, e por essas fotos posso, certamente, ter uma espécie de interesse geral, às vezes emocionado, mas cuja emoção passa pelo revezamento judicioso de uma moral e política. O que experimento em relação a essas fotos tem a ver com um afeto médio, quase com um amestramento. Eu não via, em francês, palavra que exprimisse simplesmente essa espécie de interesse humano; mas em latim, acho que essa palavra existe: é o studium, que não quer dizer, pelo menos de imediato, “estudo”, mas a aplicação a alguma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade particular. (…) O segundo elemento vem quebrar ou escandir o studium. Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo, é ele que parte da cena, como uma flecha e vem me trespassar. Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também à idéia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas, são precisamente pontos. A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere).” (BARTHES: 1984, 44 a 46)

Ele faz ainda muitas considerações sobre o studium e o punctum, mas esta outra parte é essencial:

“Um detalhe conquista toda minha leitura; trata-se de uma mutação viva de meu interesse, de uma fulguração. Pela marca de alguma coisa, a foto não é mais qualquer. Esse alguma coisa deu um estalo, provocou um pequeno abalo. (…) Coisa estranha: o gesto virtuoso que se apossa das fotos “cultas” (investidas por um simples studium) é um gesto preguiçoso (folhear, olhar rápida e indolentemente, demorar-se e apressar-se); ao contrário, a leitura do punctum (da foto pontilhada se assim podemos dizer) é ao mesmo tempo curta e ativa, encolhida como uma fera. Ardil do vocabulário: diz-se “desenvolver uma foto” (développer une photo); mas o que a ação química desenvolve é o indesenvolvível, uma essência (de ferida), o que não pode transformar-se, mas apenas repetir-se sob as espécies da insistência (do olhar insistente). Isso aproxima a Fotografia (certas fotografias) do Haiku. Pois a notação de um Haiku também é indesenvolvível: tudo está dado, sem provocar a vontade ou mesmo a possibilidade de uma expansão retórica.” (BARTHES: 1984, 77 e 78)

Interessa a mim, particularmente, quando ele fala na leitura curta e ativa – encolhida como uma fera – depois de ter falado em lance de dados. As duas imagens dão uma idéia de explosão retida, contraposto daquele “desenvolver” que é um revelar por etapas (o drama revela por etapas). O indesenvolvível é objeto da peça curta: prescinde de uma expansão retórica.

Barthes diz, em seguida, que o punctum é o que provê a foto de um campo cego, de algo que se projeta para fora do enquadramento. É como se o punctum sugerisse algo para além do que está dado. Para explicar isso melhor, ele recorre à diferença entre erotismo e pornografia: “A presença (a dinâmica) desse campo cego é, penso eu, o que distingue a foto erótica da foto pornográfica. (…) Para mim, não há punctum algum na imagem pornográfica. (…) A foto erótica, ao contrário (o que é a sua própria condição), não faz do sexo um objeto central; ela pode muito bem não mostrá-lo; ela leva o espectador para fora do seu enquadramento, e é nisso que essa foto me anima e eu a animo.” (BARTHES: 1984, 88 a 89)

Quando disse antes que a peça curta pode levar uma idéia à sua quase nudez, me referia a esta nudez que é erótica mas não pornográfica. Uma idéia para uma cena, para um texto de teatro, nem sempre continua interessante quando explorada até se esgotar. Algumas idéias são boas se desenvolvidas apenas até certo ponto. A idéia que se desenvolve o máximo possível para preencher o enquadramento de uma peça longa pode ficar sem punctum. Revelar certa idéia num formato convencional pode ser como dar a ela um tratamento pornográfico: desvenda tanto que mostra o que ela tem de desinteressante. Afinal, nem todas as idéias têm que ser totalmente interessantes. Mas não é por isso que vamos deixar de colocá-las em jogo.

Referências bibliográficas:

LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000

Vol. I, nº 1, março de 2008

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